*Com Theo Tajes
Antes dos 30 anos, Viridiana é uma cantora que impressiona pela maturidade da presença e do talento. Menina trans, ela conta que demorou a se acostumar com a própria voz, mas que foi através dela que perdeu a vergonha de ser quem é. Lançando nesta sexta-feira (17) o single “Pérolas de Plástico”, a porto-alegrense Viridiana, contemplada no edital Natura Musical com seu projeto anterior, conversou com a Híbrida sobre a nova fase de seu trabalho.
De tudo o que pode acontecer daqui para frente, Viridana tem uma certeza: quer estar sempre criando no meio dessa grande mistura chamada vida.
HÍBRIDA: Como foi a infância da Viridiana?
VIRIDIANA: Eu nasci e cresci em Porto Alegre, numa família de classe média, na viradinha dos anos 90 pros 2000. Eu sempre fui aquele tipinho clássico de criança LGBT+, sempre dei muita pinta e alternava entre ficar jogando videogame e… Na real, não de muito mais. Sempre fui vidrada nas telas, no eletrônico. Tenho uma lembrança de uma solidão que pairava, acho que muito disso vinha de ser essa criança que não se comportava como menino, daí entram todas aquelas situações chatas de transfobia/homofobia na infância, que infelizmente as crianças são ensinadas a reproduzirem. Mas ali nos meus 10 anos, que foi quando eu comecei a ter contato com a música porque comecei a tocar violão, eu comecei a sentir que se formava um espaço em que era mais aceitável ser uma criança mais sensível, mais introspectiva.
H: Quando você se descobriu cantora?
V: Acho que me descubro um pouco ainda toda vez que eu canto (risos)! Na verdade, o primeiro rótulo que eu me dei foi de violonista e guitarrista, quando eu entrei na faculdade de música, em 2016. Isso porque a voz era uma fonte de disforia bem grande pra mim, eu achava que parecia um homem cantando e não conseguia me sentir à vontade nesse espaço.
Minha voz começou a me trazer vida, ao invés de vergonha
As coisas mudaram quando eu comecei a estudar e trabalhar com produção musical. Com levar os sons pra dentro do computador e mexer neles, botar efeitos, picotar, moldar, transmutar, tudo isso. Eu gravava bem quietinha no meu quarto pra ninguém ouvir e ali eu fui criando a voz da Viridiana, descobrindo como, na verdade, a voz é ar, e a gente precisa de ar pra viver. Minha voz começou a me trazer vida, ao invés de vergonha.
H: Você sempre compôs suas próprias músicas?
V: Eu comecei a compor ali por 2018, quando eu estava na faculdade e estava muito próxima da Isabel Nogueira (que hoje trabalha com o pseudônimo Bel_Medula). A Isabel é professora da UFRGS e foi através de quem eu encontrei o maior acolhimento lá dentro. Ela que me instigou a produzir, a fazer muito barulho, muita música estranha, torta, e que, eventualmente, ouviu minhas primeiras canções, que integraram meu TCC em 2019.
Esse projeto foi o que originou o meu primeiro trabalho, que é um EP chamado Androgênia, mais um show audiovisual chamado Anatômica (tem tudo na internet pra quem quiser fuçar). Por mais que hoje eu não tenha muita afinidade com esse trabalho, são minhas cinco primeiras canções da vida, e fico feliz que isso esteja registrado. É parte de mim, parece aquelas fitas cassete com as primeiras palavras do bebê.
H: Quais suas influências/referências musicais?
V: Acho que é um balaio bem grande de coisas. Hoje em dia, eu tenho tentado me aproximar um pouco mais de referências clássicas aqui do Brasil. Esse ano, um projeto que eu tenho com outras amigas, a banda Inquilinas, foi convidado a criar um show em homenagem à Gal Costa, e foi muito lindo poder mergulhar de cabeça na obra dela e entender realmente a potência que ela foi, e é, pra nossa música. Eu não cresci ouvindo muita música brasileira, por isso rola esse recuperar de um “tempo perdido” (risos).
Ao mesmo tempo, os sons retrô, ou que são inspirados por décadas passadas, me influenciam muito. Coisas tipo David Bowie, Björk, The Cure. E também artistas de hoje em dia que olham realmente pra sonoridades ousadas, coisas bem futuristas, como a Caroline Polachek, Hikaru Utada, Charli XCX, enfim… Gosto de pensar que estou aí, no meio dessa grande mistura.
H: Qual e quando foi seu primeiro show?
V: Meu primeiro show de autorais foi, com muita gratidão, numa casa bem emblemática de Porto Alegre, que é o Agulha. Em 2019, a banda do Curitiba Marrakesh veio fazer um show na cidade e o programador da casa, o Guilherme Thiessen, me mandou uma mensagem dizendo que tinha ouvido meu trabalho (aquele EP que comentei ali atrás) e queria muito que eu pudesse fazer um show de lançamento pra esse trabalho. Ele comentou com os garotos dessa banda e eu fiz o show de abertura! Foi bem especial, fiz ele em formato solo, com meu computador, um microfone e mil efeitos e ruídos que eu ia disparando. Até hoje tenho muito carinho por esse show, acho que ali eu senti como era ser consumida por essa energia toda do momento da performance.
H: Como foi a experiência com o projeto Natura Musical?
V: O Natura foi um privilégio imenso e uma oportunidade única de abrir portas pra mim. Foi pelo edital que eu lancei meu primeiro disco, Transfusão, junto de um extenso trabalho audiovisual, com três clipes e um show virtual, que explorava esse tensionamento pandêmico de fazer shows e assistir eles em casa.
Eu queria propiciar pro meu público uma experiência que fosse entre um show, um clipe e um filme. Algo que pudesse funcionar tanto pela performance quanto pelas canções, mas também pelos visuais lindos que a gente construiu. Esse projeto todo também teve um viés bem grande de incluir outros profissionais da cultura trans aqui do Sul. A direção do show virtual é da Gautier Lee, as fotografias de todo o projeto são de Gabz404 e Lau Baldo, e os figurinos são da Luísa Casagranda, que também trabalhou no novo clipe, “Pérolas de Plástico”.
H: “Pérolas de Plástico” é o primeiro single de um novo trabalho?
V: Sim! Ainda estamos trabalhando num ritmo bem vagaroso em direção ao próximo disco. Acho que uma das coisas do processo anterior, por conta do edital, era de termos alguns prazos a cumprir, o que é ótimo porque me fez ser muito objetiva e entrar em contato com o que eu realmente queria daquele processo. Agora, o tempo das canções é o tempo que eu estou dando pra elas.
“Pérolas” ainda é um trabalho super recente, de setembro do ano passado, e resolvemos lançar agora porque eu “vazei” ela em dois shows que fiz ano passado, em Porto Alegre e em São Paulo, e a recepção do público nos impressionou muito positivamente. Eu desci do palco, olhei pra Marta (minha manager), pra Luísa e pro Theo Tajes (que dirigiu o clipe, e é um grande amigo) e nós quatro sabíamos que um novo single tinha acabado de nascer ali.
H: O que a nova fase tem de diferente em relação à fase anterior?
V: Acho que cada vez mais eu me permito mover em direções diferentes com meu som. Transfusão foi um trabalho que me deixou muuuito feliz e satisfeita, mas não deixa de ser meu primeiro trabalho, parecia que eu queria provar que era capaz de fazer mil e uma coisas ao mesmo tempo.
Agora eu me sinto muito mais tranquila, eu conto com muitas pessoas me ajudando, uma rede de apoio que realmente é o que possibilita que tudo flua. Fico feliz também que eu me sinta conquistando aos pouquinhos o meu público, que espera cada lançamento e se move junto comigo para diferentes sons e escutas.
H: Você tem ou participa de outros projetos, além desses da sua carreira solo?
V: Sim! Acho que o que mais tem movimentado aqui por Porto Alegre é a banda que eu tenho com três outras amigas e musicistas incríveis, Mel Souza, Thays Prado e Paola Kirst. Juntas, formamos a Inquilinas, que é um projeto que reformula nossos projetos solo e também tem esse espetáculo onde nos apropriamos de algumas canções do repertório da Gal e fazemos do nosso jeitinho.
Também volta e meia toco nas bandas de outras artistas maravilhosas aqui do Sul como a Gabriela Lery, a Rita Zart e a própria Bel_Medula, que comentei mais cedo. Muito se fala, aqui por essas bandas, de como é difícil articular nossa cena no Sul, mas todos os nomes que eu citei aqui me inspiram demais a inventar outros futuros e belezas possíveis na arte.