Um relatório publicado pelo Centro de Ética no Esporte do Canadá (CCES) concluiu que não há nenhuma evidência científica de que fatores biomédicos representam vantagens para mulheres trans nos esportes de elite. A pesquisa sugere que fatores sociais – como nutrição e a qualidade de treinamento – são os principais determinantes para o desempenho dos atletas.
O Transgender Women Athletes and Elite Sport: A Scientific Review é uma revisão aprofundada de toda a literatura científica publicada em língua inglesa sobre o tema entre 2011 e 2021. A análise levou em consideração estudos biomédicos e sociais, e concluiu que há poucas evidências de que fatores relacionados à puberdade masculina – como tamanho do pulmão e densidade óssea – produzem qualquer vantagem para mulheres trans atletas.
As regras existentes em relação à participação de mulheres trans no esporte geralmente vinculam a permissão para competir na categoria feminina à supressão da testosterona, que deve estar a níveis baixos e previamente estabelecidos. O critério também deve ser obedecido por atletas cisgêneras – o que também pode se tornar um problema, visto que mulheres cis com níveis de testosterona acima de regra poderão enfrentar os mesmos questionamentos sobre suas identidades de gênero e serem prejudicadas devido à transfobia.
“As evidências disponíveis indicam que mulheres trans com supressão de testosterona não têm nenhuma vantagem biomédica clara sobre mulheres cis em esportes de elite”, conclui. “Inexistem biomarcadores que permitam a comparação dos corpos dos atletas uns com os outros em termos de desempenho.”
As pessoas trans, especialmente as mulheres, têm sido injustamente perseguidas no mundo esportivo de elite e de base. Algumas vêm sendo totalmente proibidas de competir devido à retórica anti-trans que tem se espalhado com base apenas no senso comum e na completa ausência de estudos ou evidências científicas para aprofundar questões normalmente levantadas por quem pretende afirmar que mulheres trans teriam alguma suposta vantagem.
Na maioria das vezes, fica nítida a vontade de que esse debate não avance do campo das ideias e ideais. As manifestações de interesse no tema estão quase sempre atreladas ao desejo da exclusão imediata de atletas trans dos esportes, como uma forma de atender a uma demanda política excludente, anticientífica e negacionista criada com base no pânico ideológico antitrans.
Qualquer pessoa incapaz de argumentar sobre a presença de mulheres trans nos esportes sem também insultá-las e/ou recorrer à transfobia não deve ter uma posição considerada válida sobre o tema. Opiniões e populismo não podem se opor às evidências científicas em nenhuma hipótese, principalmente quando falamos de um debate que merece ser tratado com a devida seriedade.
A pesquisa do CCES ainda encontrou fortes evidências de que “a política esportiva de elite é feita dentro de normas culturais transmisóginas, misóginas, racistas e geopolíticas”.
Essas “normas” são o resultado de uma longa história de exclusão de mulheres nos esportes, especialmente mulheres cujos corpos não se adequaram aos padrões de feminilidade, sejam elas intersexo – que foram e continuam submetidas a testes de feminilidade ou até mesmo cirurgias feminizantes – ou trans.
Vários órgãos reguladores de esportes no Reino Unido, como a Welsh Rugby Union, a Scottish Rugby Union, a British Cycling e mais recentemente a Federação Internacional de Natação, proibiram injustamente as pessoas trans de participar em níveis de elite.
No ano passado, o próprio Comitê Olímpico Internacional (COI) proibiu a exclusão de atletas trans com base na simples “presunção de vantagem” e definiu que todas as regras deveriam seguir “abordagem baseada em evidências”.
Apesar de essas novas evidências surgirem a cada ano, os estudos que têm atestado a inexistência dessas supostas vantagens de desempenho são mais robustos que as poucas fontes científicas afirmando o contrário, como observa o relatório. Ainda assim, políticas anti-trans têm ganhado o debate político e parte da opinião pública, tirando de atletas trans a chance de competir.
A adolescente trans Maria Joaquina, patinadora de 15 anos, já foi injustamente impedida de participar de competições e, recentemente, foi excluída do painel de atletas do time brasileiro da Confederação Brasileira de Desportos no Gelo. Ainda assim, ela se tornou campeã sul-americana de patinação.
Maria Joaquina tornou-se nacionalmente conhecida aos 11 anos, quando seus pais tiveram que mover uma ação na Justiça para garantir o direito de a menina competir no Sul-Americano de Patinação sobre rodas.
Nesse momento atual de perseguição contra atletas trans, que virou uma pauta prioritária para a extrema-direita em várias partes do mundo como Estados Unidos e aqui no Brasil, é importante citar que Maria Joaquina nunca teve “puberdade masculina”. Mesmo o “veto” da Associação Mundial de Atletismo, por exemplo, não se aplicaria a ela, que pelas regras é totalmente elegível para competir na categoria feminina.
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Apesar das novas evidências mostrarem que traços biológicos das pessoas trans não representam uma ameaça real ou vantagem em relação a homens e mulheres cisgêneros, a comunidade trans ainda é difamada e impedida de participar de esportes competitivos.
Por isso, é importante sempre verificar a origem das informações usadas contra mulheres trans no esporte, já que muitas têm sido financiadas ou forjadas para servir os interesses políticos de grupos anti-trans.
Ao fim, os autores do relatório admitem que os dados analisados são limitados e se referem apenas a mulheres trans binárias que competem nas categorias profissionais. Mas também recomendam, com base na ciência e em dados empíricos, “que todos os esforços razoáveis devem ser feitos para que o esporte seja inclusivo e acessível a indivíduos transgêneros”.