A união entre figuras religiosas e integrantes da comunidade LGBTQIA+ parece improvável atualmente. Tanto que é difícil imaginar de que modo uma personalidade importante da vertente cristã como a evangelista Tammy Faye chegou a ser considerada ícone do movimento por trazer acolhimento num dos momentos históricos mais vulneráveis para essa população.
O História Queer de hoje vai contar um pouco sobre a ascensão, queda e renascimento da notável apresentadora cristã que ganhou notoriedade na década de 1980, nos Estados Unidos, ao abraçar a comunidade LGBTQIA+ durante o ápice da epidemia do HIV/Aids.
Faye nasceu em 7 de março de 1942, na cidade de International Falls, estado de Minnesota. Filha de pastores neopentecostais, ela começou a falar em línguas aos 10 anos e, pela surpresa e impacto da experiência, prometeu dedicar sua vida a Deus.
Durante seu percurso numa universidade da cidade de Minneapolis, conheceu Jim Bakker, com quem veio a se casar em 1961. Nos primeiros anos de matrimônio, os dois percorreram os EUA para espalhar a palavra do cristianismo. Enquanto ele pregava, ela ficava encarregada de cantar músicas para as crianças.
A sinergia do casal chamou a atenção de um produtor de televisão cristã, que os convidou para apresentar um programa voltado ao público infantil. Em 1974, alçaram voos mais altos, e criaram o canal Praise The Lord (PTL) [Louve o Senhor, em tradução livre], inteiramente voltado ao conteúdo religioso.
Durante seu auge, o PTL chegou a ser transmitido para mais de 13 milhões de TVs nos EUA. Tammy, além de apresentadora do The Jim and Tammy Show, também produzia outros programas, como o Tammy Faye’s House Party – uma atração de variedades ligada aos tópicos do momento que incluía, dentre outros, entrevistas, apresentações musicais e dicas de como cuidar da própria casa.
Nesse período, Faye já atraía a atenção do público LGBTQIA+ pelo seu charme camp: famosa por utilizar roupas extravagantes, maquiagens pesadas e penteados elaborados, ela falava com o telespectador através de uma genuína emoção – o que a distinguia de demais televangelistas (incluindo o próprio marido), que a acusavam, pejorativamente, de ser demasiado excêntrica.
Mas o grande impacto da apresentadora com o público queer veio em 15 de novembro de 1985, quando convidou o pastor Steve Pieters, que então vivia com HIV, a um dos programas da PTL para discutir seu diagnóstico, fé e sexualidade. Na época, o mundo enfrentava o auge da epidemia da doença, que ainda era associada majoritariamente à população homossexual e referida como “peste gay”.
“O quão triste é que nos cristãos, que temos de ser o sal da terra, que temos de amar a todos, temos tanto medo de um paciente com AIDS que não podemos ir até ele e abraçá-lo e dizer que nos importamos”, disse, com olhos marejados, durante a entrevista.
Mais tarde, Pieters revelou à uma rede associada à CNN que, embora muitas das questões levantadas por Tammy pudessem ser tidas como inapropriadas atualmente, o importante foi o público que elas atingiram: “Muitas pessoas me falaram ao longo dos anos que aquelas perguntas eram estúpidas ou bobas, mas para a audiência dela, aquelas eram as perguntas certas”.
Quase duas décadas depois, Faye contou ao Metro Weekly que sabia do impacto que o episódio teria com o público LGBTQIA+. “Eu fui provavelmente uma das primeiras pessoas a ter um homem gay no meu programa. Então acho que eles se lembram disso. Eles sabem que nós os aceitamos”, disse.
Além de ter dado espaço para um homem que enfrentava o preconceito do HIV, Faye também chegou a debater outros tópicos considerados tabus na época, como implantes penianos, e recebeu figuras marginalizadas pela sociedade e pela comunidade cristã, como adictos.
Em 1992, Tammy e Jim, que haviam construído um império na televisão cristã dos EUA, se separaram após uma série de escândalos. No final dos anos 1980, ele fora acusado de assediar sexualmente uma ex-secretária, além de ter sido sentenciado à prisão por fraude e desvio de verbas arrecadadas pelo PTL; enquanto ela, recriminada pelos fiéis conservadores, foi internada em uma clínica de reabilitação por uso indevido de medicamentos.
Após o divórcio, a apresentadora se tornou ainda mais presente em seu apoio à comunidade LGBTQIA+ enquanto mulher evangélica, chegando a frequentar Paradas do Orgulho ao longo das décadas de 1990 e 2000, e se tornando amiga de importantes figuras do meio, como RuPaul, Fenton Bailey e Randy Barbato – este último responsável por dirigir um documentário sobre ela em 2000.
Tammy faleceu em 2007, aos 65 anos, por consequência de uma duradoura batalha contra o câncer de cólon. Em sua última entrevista, realizada um dia antes de sua morte, afirmou que quando havia perdido tudo após seu ex-marido desviar as verbas do PTL, foram os homossexuais que a socorreram e que ela seria eternamente grata a eles por isso.
Em 2021, sua história foi readaptada em Hollywood no filme Os Olhos de Tammy Faye, com Jessica Chastain e Andrew Garfield no elenco. Ao aceitar o Oscar de Melhor Atriz, Chastain, que também produziu o longa, reiterou a importância das palavras de compaixão da televangelista. “Estamos tendo de lidar com discriminações legislativas que estão assolando nosso país com o único objetivo de nos separar. Há violência e crimes de ódio… Em tempos como este, penso em Tammy e me sinto inspirada por seus atos radicais de amor”, disse.
A cinebiografia Os Olhos de Tammy Faye está disponível para streaming no Star+, enquanto o documentário de mesmo nome segue no catálogo do Wow Presents Plus.