A academia do Grammy anunciou nesta terça-feira (23) os indicados à sua 64ª edição, que será apresentada em 31 de janeiro de 2022. Dos muitos nomes já esperados entre as principais categorias, como Olivia Rodrigo, Billie Eilish, Justin Bieber e a parceria de Lady Gaga com Tony Bennett, a maior surpresa talvez tenha vindo de Lil Nas X, não pela qualidade de seu trabalho, mas por tudo o que ele representa e que, consequentemente, vai contra aquilo que a indústria musical dos Estados Unidos costuma reconhecer.
O rapper, que na edição de 2019 levou para casa o gramofone de Melhor Desempenho de Pop em Duo ou Grupo e Melhor Videoclipe pelo hit inegável “Old Town Road”, novamente abocanhou este ano indicações entre as principais categorias do evento: Álbum do Ano, pelo seu disco de estreia, “Montero”; Performance de Rap Melódico pela parceria com Jack Harlow, em “Industry Baby”; e Videoclipe, Canção e Gravação do Ano por “Montero (Call Me By Your Name)”.
Considerando que as indicações e prêmios distribuídos pelo Grammy são escolhidos por pessoas da própria indústria musical (artistas, produtores, compositores, agentes etc.), é seguro dizer que Lil Nas X já chegou mais longe que qualquer outro rapper negro e abertamente gay conseguiu antes. Ele pode não ser o primeiro a figurar entre as maiores categorias, principalmente quando tivemos Frank Ocean e Tyler, The Creator nos últimos anos. Mas alcançar esse tanto de indicações depois de ter desafiado toda a homofobia da cena rap e os conceitos enraizados de como um artista do gênero deve cantar, se apresentar, falar e se vestir é algo, de fato, admirável.
Enquanto Frank e Tyler dão a entender que são bissexuais e assumem essa identidade alternando entre pronomes masculinos e femininos em suas composições, a estética apresentada por ambos é bem mais heteronormativa do que a proposta de Lil Nas X. Em “Montero”, ele deixa explícito que o objeto de sua afeição, desejo e tesão é outro homem, enquanto aparece de salto, vestido e unhas pintadas. A mensagem é duplamente reforçada em seus videoclipes, nos quais ele invade jogos de futebol, prisões e até o inferno para esbanjar sem pudor a sua identidade afeminada.
Quem está acostumado a ver o lado divertido e desinibido de Lil Nas X nas redes sociais, finalmente consegue enxergar, ou melhor, ouvir tudo o que aflinge por trás da sua persona invicta na internet. Em Montero, o artista mostra uma faceta vulnerável pouco vista enquanto mescla uma produção com referências do pop, do rock e do hip hop, alcançando feitos impressionáveis com o trabalho.
Musicalmente, “Montero” se mantém equilibrado entre a opulência e luxúria desinibida do rap, ao mesmo tempo em que insere baladas e traps reflexivos ao longo dos seus 40 minutos de duração. Nesses momentos em que abaixa a guarda, ele reflete sobre o tanto que ainda precisa provar e confessa uma ansiedade inquietante de saber se tudo vai dar certo. Afinal, apesar de já ser considerado uma estrela, o rapaz só tem 22 anos e está no seu primeiro disco.
As parcerias de “Montero” são com nomes quentes do rap, como Doja Cat, Megan Thee Stallion e Jack Harlow, lado a lado com ícones LGBTI+ de carreiras já muito bem estabelecidas, obrigado, como Miley Cyrus e Elton John, que aparece tocando piano na confessional “One of Me”, onde Lil Nas X abandona o tom bem humorado de sempre pra mostrar como as críticas sobre a possibilidade de ser um “one hit wonder” ecoam.
Em “Sun Goes Down”, segundo single promocional do disco, ele admite inseguranças sobre a cor da sua pele e o tamanho dos seus lábios, ao mesmo tempo em que cogita o suicídio. “Esses pensamentos gays sempre me atormentavam/ Eu rezava para que Deus tirasse-os de mim.”
Miley fecha o disco na balada lúdica e vulnerável “Am I Dreaming”, com um recado simples: se eu conseguir chegar só até aqui, nunca se esqueçam de mim no futuro. Bom, para um gay preto que tinha vergonha de sua orientação sexual na adolescência e hoje conseguiu atingir duas vezes o topo das músicas mais executadas nos Estados Unidos (com “Montero” e, depois, com “Industry Baby”), é seguro dizer que o “aqui” alcançado já é bem longe. Principalmente quando as faixas trazem versos como “Eu não transo com vadias/ Eu sou queer” e “Quero atirar um filho na sua boca enquanto estou cavalgando”.
A receptividade de “Montero” acabou furando a bolha da comunidade e, se a inundação de posts com homens héteros elogiando o disco já era uma indicação, os dois topos das paradas e os plays de streaming solidificaram essa certeza. Ainda em outubro, Lil Nas X se tornou o rapper mais ouvido no Spotify, acima de nomes já consolidados e gigantes como Post Malone, Kanye West e Drake, todos com trabalhos recentes. Agora, as indicações ao Grammy apenas solidificam o pioneirismo de um artista preto e abertamente LGBTI+, que abre uma série de portas para as próximas gerações ao mesmo tempo em que vai preenchendo a lacuna há muito sentida dessa representatividade.
E se ele já teve coragem de andar no tapete vermelho com saias e vestidos, encenar uma gestação nas redes, indicar que é passivo, dançar no colo do capeta e beijar seus dançarinos no palco do Saturday Night Live e do BET Awards (conhecido pela homofobia do público), resta esperar para ver o que ele fará no palco do Grammy 2022. De qualquer forma, estaremos assistindo e aplaudindo.
Ouça “Montero” abaixo: