Tido como um dos expoentes da androginia do pop-rock brasileiro dos anos 1970, Edy Star transgrediu no visual e na atitude libertária. Fez um LP maravilhoso com seu grande parceiro Raul Seixas, o Sociedade da Grã-Ordem Kavernista (1971), considerado uma pérola do rock brasileiro. No auge da ditadura militar, comandava um show proibidão num cabaré da zona portuária do Rio onde tudo acontecia: de sexo ao vivo a números musicais tresloucados.

Reverenciado por todos da sua geração, participou da montagem histórica de Rocky Horror Show, fez números para o Fantástico da Globo e gravou o LP Sweet Edy, hoje disputado por colecionadores. Depois de passar quase 20 anos na Espanha, ele retornou ao Brasil com força total, já estabelecido como avô do movimento queer brasileiro.

Confira abaixo uma conversa franca, divertida e reveladora com Edy Star.

HÍBRIDA: Com quantos anos você começou a sua carreira?

EDY STAR: Acredito que foi aos 12 anos, quando comecei a cantar na Rádio Sociedade da Bahia, no programa Hora da Criança. Quando cheguei lá, encontrei uma turma de peso, as irmãs que formariam o Quarteto em Cy: Cybele e Cyva.

H: Vocês cantavam que tipo de música ali?

ES: Músicas infantis, do folclore infantil para crianças, performadas por nós, crianças.

H: Mas aos 12 e 13 anos você ainda era inocente?

ES: Estava descobrindo os meninos. Eu fui criado convivendo apenas com as crianças das redondezas de onde morava. Indo pra Hora da Criança, eu descobri pessoas de outros bairros, de outra forma de pensar.

H: Como foi essa descoberta da sua sexualidade no início dos anos 1950? Você ficou com medo?

ES: O grilo na minha cabeça só vem aos 17 anos, quando começo a ver o sexo como uma coisa proibida. Mas aos 12, 13, 14 anos era apenas um divertimento: você tocar nos meninos e eles te tocarem. Até os 16 anos, era para mim uma brincadeira gostosa, ir pro mato e fazer aquela sacanagem. Eu ainda não tinha descoberto a palavra “sexual”. Aos 16 anos, começo a me preocupar de que havia uma condenação naquelas práticas. Aí, tomo consciência de que era uma coisa proibida e pecaminosa. “Eu estou todo errado, não é nada disso. Vou ter que me livrar disso, mas como vou me livrar disso?”.

H: E como você se resolveu nessa questão?

ES: Descobri que havia muitas pessoas que faziam o que eu fazia e estavam felicíssimas! Descobri uma comunidade de gays de todos os tipos e classes sociais. Todos felizes com suas sexualidades. Pensei “Vou em frente, não vou mais me preocupar com isso”. Mas é claro que eu ficava alerta, com medo de que isso chegasse ao conhecimento da minha família. Todos nós tínhamos esse temor. E tudo que nós fazíamos era longe do bairro onde morávamos, no centro da cidade, na Praça da Sé, na parte alta de Salvador, que era o nosso lugar de encontros.

H: Quando essa vida dupla acabou?

ES: Quando saí de casa, aos 23 anos, e aluguei um quarto para morar. Mas também tinha um quarto pra sacanagem: aluguei com três amigos para que pudéssemos ter nossos encontros amorosos ali.

H: Mais adiante você se envolveu com o rock. Como foi isso?

ES: Olha, eu tive um namoradinho aos 15 anos que se chamava Roque (risos) e ele acabou se transformando, anos mais tarde, na travesti histórica Marlene Casanova! (risos)

H: Tudo bem, mas e o tal do Rock ‘n’roll, como entrou na sua vida?

ES: Quando chegou ao Brasil o filme Ao balanço das horas (1956), com Bill Haley e seus Cometas. A publicidade dizia que aquela música era enlouquecedora e a garotada influenciada por isso começava a dançar dentro do cinema, inclusive eu, que fui expulso do cinema Guarani por dançar.

H: E o que acontece em seguida?

ES: Aí começou a onda do rock ‘n’ roll no Brasil e nós fizemos parte dela. A juventude toda acompanhou isso. Depois, veio Elvis Presley e eu estava dentro do movimento. Era um ato de rebeldia da juventude. Foi ali que eu conheci o Raul Seixas.

H: O rock tinha a ver com sua personalidade provocadora e irreverente, não é mesmo?

ES: Acho que tudo que eu faço é tão natural, eu não planejo “ser rebelde”. Isso está em mim, quando abro a boca já estou provocando.

H: Mas não acha que o rock caiu como uma luva pra você?

ES: Sob certo ângulo, sim. Mas mais adiante descobri que a grande rebeldia estava em frequentar puteiros, me dar com as putas e com os cafetões.

Edy Star: "Quando os héteros me xingavam, eu não deixava barato, partia pra cima deles e enfiava porrada. Coisas da Bofélia" (Foto: Pedro Stephan)
Edy Star: “Quando os héteros me xingavam, eu não deixava barato, partia pra cima deles e enfiava porrada. Coisas da Bofélia” (Foto: Pedro Stephan)

H: Você ganhou um apelido gaiato. Chamavam você de “Bofélia”. Pode explicar o porquê desse apelido?

ES: O nome “bofe” na gíria gay se refere ao homem macho e valente. Como eu era atrevido e muito brigão, disseram que eu era uma bicha macha: Bofélia. Quando os héteros me xingavam, eu não deixava barato, partia pra cima deles e enfiava porrada. Coisas da Bofélia.

H: Quando você conheceu o Raul Seixas, se deram bem logo de cara ou houve um estranhamento?

ES: Nós participávamos de um clube de rock ‘n’ roll, o Elvis Rock Clube, que foi montado por ele e por Waldir Serrão. Nesse clube, fazíamos shows no cine Roma e íamos nos apresentar em outras cidades próximas. Participava dos shows, tinha meu número, fazia dublagem e dançava rock ‘n’ roll. Mas não me aproximava do Raul pra não pensarem que eu estava querendo conquistá-lo.

H: Quando foi que você se tornou amigo pra valer dele?

ES: Foi só nos anos 1960, quando saí da Petrobras e comecei a trabalhar na Rádio Cultura da Bahia. Raul já estava se apresentando lá com Os Panteras, num programa “só para mulheres”, e as garotas lotavam o auditório.

H: Como ele era nessa época?

ES: Homofóbico. Ele e seu grupo entravam primeiro tocando rocks dos Beatles etc. E, depois deles, entrava eu, que era a grande atração. Ele ficava furioso de ter que acompanhar e tocar pra um viado.

H: O que você fez?

ES: Eu comecei a ligar pra casa dele fingindo que era uma fã. E começou uma paquera pelo telefone. Ele falava mal de mim e eu, de fã, concordava. Ele gravou nossa conversa e foi dizer que estava namorando uma fã. Então, o Waldir Serrão disse pra ele “Ô Raul, deixa de ser besta, essa fã é o Edy te zoando!”.

H: E o que aconteceu?

ES: Ele ficou enlouquecido por eu tê-lo enganado e quis me dar porrada. Foi uma correria pelos jardins da Rádio Cultura, todos rindo, eu fugindo e ele correndo atrás de mim! (risos) Depois de muito correr, vieram apartar. Começamos a conversar e, por incrível que pareça, a partir daí Raul mudou totalmente comigo, ficamos muito amigos até o final da vida dele.

H: Vocês voltaram a trabalhar juntos?

ES: Em 1970, ele foi à Bahia me contratar. Ele era produtor da CBS e, mesmo tendo inúmeros amigos artistas, fui eu o escolhido. Ele me deu a passagem e dinheiro pra ir pro Rio de Janeiro, onde era a sede da CBS. Lá no Rio, ele me deu umas roupas incrementadas, foi quando eu deixei o cabelão enorme e comecei a usar aquele visual hippie que aparece nas fotos.

H: Então, quando veio da Bahia, era mais comportado?

ES: Sim, eu vim da Bahia completamente diferente. Era um visual mais limpo. No Rio, eu aderi ao hippie: o “paz e amor” era o grande movimento na época. Não por ser moda, mas porque me convinha e eu acreditava naquilo: “dê uma chance à paz”, ao som dos Beatles.

H: O que aconteceu no Rio?

ES: Eu gravei um compacto na CBS com duas músicas: “Aqui é quente bicho”, do Raul; e “Matilda”, em versão feita pelo Leno, do outro lado. Meses depois, juntando eu, Raul e o Sérgio Sampaio, resolvemos fazer um disco: Sociedade da Grã-Ordem Kavernista.

H: E o que aconteceu com o disco?

ES: A matriz em Nova Iorque ouviu o disco e mandou uma mensagem perguntando para a direção daqui o que era aquilo. O diretor-geral da CBS nos chamou e disse que música era Roberto Carlos, Wanderléa etc. E mandou recolher todos os discos das lojas. Já tinham saído críticas positivas, reportagens n’O Pasquim, n’O Globo, na Última Hora, n’O Dia

H: Foi a partir desse fracasso que você foi trabalhar num cabaré da Praça Mauá?

ES: Sim, porque quando estava na distribuição do disco conheci um programador de rádio que me chamou pra cantar samba de roda baiana numa churrascaria da Tijuca. Esses shows fizeram sucesso, e ele me pediu “desenha esses figurinos aqui”. E eu comecei a desenhar. Então veio uma pessoa e me disse “Olha, esses figurinos que você desenha aqui, ele vende nas boates da Praça Mauá”.

H: E o que você fez?

ES: Eu fui na Praça Mauá. Era uma barra pesadíssima, uns puteiros do porto da cidade. Fui morrendo de medo, vi os shows de strip-tease etc. E fui falar com o diretor do show e o dono da casa noturna perguntando se poderia trabalhar ali. Eles riram e zombaram de mim. “Ah, você é baiano? Amigo do Caetano Veloso?” e me chamaram muito no deboche para fazer um teste no dia seguinte.

H: E você foi?

ES: Claro! Eu cheguei com uma roupa toda justa, cabelão enorme, entrei no palco cantando a canção do musical Hair. As putas na plateia enlouqueceram e eu fui contratado ali na hora, pra trabalhar nos dois shows que eles apresentavam à noite. Nos anos seguintes, trabalhei em todos os cabarés do Rio: da Praça Mauá, da Lapa e de Copacabana. E ganhei prêmio! De melhor artista do ano!

H: Mas a turma da zona sul começou a prestigiar teus shows off da Praça Mauá, não é mesmo?

ES: As pessoas começaram a comentar e o pessoal d’O Pasquim foi assistir. O Pasquim era formador de opinião e tendências. Eles adoraram e publicaram uma matéria dizendo que tudo aquilo que era proibido pela censura tinha no meu show! Tinha número lésbico, nu frontal, anão pirocudo correndo pela plateia etc. E aquilo virou moda! A elite da zona sul saía das suas festas e esticava pra Praça Mauá. De repente, estavam lá Jorginho Guinle, Baby Pignatary, Elza Braga, Odile Rubirosa. Todo o high society carioca estava frequentando a Praça Mauá.

H: E como foi sua relação com esse público?

ES: Foi daí que nasceu meu sobrenome Star. Uma das socialites virou pra mim e disse que eu era uma Star, que eu deveria usar esse sobrenome.

H: Como você saiu da Praça Mauá e começou a se apresentar nas boates chiques de Ipanema?

ES: Eu estava me apresentando no Teatro Rival, numa revista chamada Cinelândia Muito Louca. Ali, eu fazia um número imitando a Maria Alcina. Ela foi, viu e voltou quinze dias depois com o diretor do show da boate Number One, onde ela se apresentava em Ipanema. Ele viu a minha apresentação e me contratou para eu ter um espetáculo só meu.

H: Foi nessa época que você gravou seu disco Sweet Edy?

ES: Sim. O João Araújo, pai de Cazuza, viu meu show e me convidou para gravar um disco e eu fui correr atrás de repertório.

H: Tanto você quanto o Ney e os Dzi Croquettes estavam na onda da androginia, que era um movimento internacional, não é mesmo?

ES: Sim, mas era uma coisa muito inconsciente.

H: Vocês não viam David Bowie, Marc Bolan?

ES: Nós conhecíamos de fotografia. Não tinha vídeo, não tinha filme nem documentário, não tinha nada sobre isso. Não sabíamos como eles se apresentavam, só havia fotografias. Quando chagavam os discos, ficávamos imaginando “como será que esse cara faz?”.

H: Então era uma referência limitada?

ES: Sim. Só muito tempo depois é que eu vi um vídeo do show Ziggy Stardust, do David Bowie. Aquela aranha enorme, eu não sabia daquilo, nunca vi aquilo. Nós não tínhamos os vídeos, apenas as fotos. Tínhamos noção de alguns dos seus figurinos, mas sem noção como se apresentavam em cena, se faziam viadagem no palco ou não.

H: Mas vocês, mesmo sem a tecnologia atual, estavam conectados?

ES: Anos atrás, o Caetano (Veloso) me disse que viu o Mick Jagger entrar em cena de sapatilha de balé com um boá de plumas. Naquela época, era muito transgressor. Ora, eu fazia isso aqui sem saber. Inconscientemente, nós estávamos dentro de um movimento mundial. Acontecia na Inglaterra, nos EUA (em especial São Francisco), na França e na Itália.

Edy Star fotografado em 1974 com boá de plumas, bota cano alto e renda para a capa do disco "Sweet Edy" (Foto: Divulgação)
Edy Star fotografado em 1974 com boá de plumas, bota cano alto e renda para a capa do disco “Sweet Edy” (Foto: Divulgação)

H: Vocês da turma da androginia trocavam figurinhas entre vocês? Eram uma turma?

ES: Não, não, não! Nem intimidades. Apenas na base do “Oi, tá bom? Abraços e tchau”. Éramos colegas, mas não era uma turma.

H: Você deu uma entrevista pra revista Fatos e Fotos onde se assumia gay. Isso foi em que ano?

ES: Foi em 1975. A foto que está ilustrando a matéria é uma imagem minha da peça Rocky Horror Show: vestido só de tapa sexo. Naquela época, as pessoas transgrediam mas não se usava palavra nenhuma: nem gay nem viado, nada pra autodesignar. Na hora eu simplesmente assumi o que eu sou, durante a entrevista.

H: Quanto tempo você esteve em cartaz com o Rocky Horror Show?

ES: Os três meses que esteve em cartaz. A peça estreou e, quinze dias depois, o Eduardo Conde, que fazia o papel principal, teve hepatite e eu entrei pra substituí-lo. Com apenas uma semana de ensaio estreei. Três meses depois, a temporada terminou porque as pessoas da produção entraram em guerra. Meu visual era muito afrontoso, usava uma tanga mínima. Duvido que nos EUA ou na montagem da Inglaterra usassem algo tão mínimo.

H: E depois disso, o que você fez?

ES: Eu fui conhecer a cidade que mais desejava, Barcelona. Comprei uma passagem de ida e volta de um mês. Mas, no terceiro dia, depois que cheguei lá já tinha arrumado emprego e estava trabalhando.

H: Você ficou morando quanto tempo lá?

ES: Fiquei 23 anos. De 1992 a 2014.

H: Você viveu a liberação sexual, depois veio a epidemia da Aids e você sobreviveu a ela. Como foi essa época para você?

ES: De puro temor, pânico. Mas por outro lado eu sempre fui tão chato na escolha de parceiros. Sempre procurei parceiros que estão fora do círculo gay. Eu sofro da maldição da “casseta do faraó”! Todos que eu gosto são casados! (risos)

H: Havia aquele lema “sexo, drogas e rock ‘n’ roll” mas você não seguia então?

ES: Nunca fui das drogas e era seletivo no sexo. Mas gostava de trepar e desmaiar, gozar e cair pra trás. Uma maravilha.

H: Você teve muitos amores?

ES: Fui muito amado e amei muito.

H: A maioria deles era gay ou eles se identificavam como héteros?

ES: Eu gosto de homens que têm esse jogo, essa atitude hétero. Mais que isso: eu exijo uma atitude hétero dos parceiros. Eu sei que é uma coisa antiga, mas bicha com bicha dá largatixa, pra mim não rola.

H: E você está feliz nessa sua fase de São Paulo?

ES: Por um lado, sim. Por outro, não. Porque eu sou viciado em trabalho. Fiquei anos trabalhando diariamente (noturnamente) num cabaré. Mas cheguei aqui e comecei a fazer shows, num mês tem show, no outro não tem. Essa inércia entre um show e outro é péssima.

H: Você não tem vontade de cantar junto com essas estrelas queers da nova geração?

ES: Eu adoraria fazer um duo com Pabllo Vittar, Liniker. Adoro me misturar com gente nova. Meu último EP eu cantei com Filipe Catto e quando fui fazer o show, convidei o Johnny Hooker para cantar comigo. É muito enriquecedora essa mistura.


Pedro Stephan é fotógrafo e jornalista, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Trabalhou na imprensa LGBTI+ do Brasil, em veículos como Mix Brasil, G Magazine, G Online e Sui Gêneris Press. Já expôs seu trabalho na Inglaterra, Portugal, Espanha e Itália bem como nos prestigiados salões do eixo São Paulo-Rio.