Qualquer pessoa que converse com o advogado Paulo Iotti por meia hora entende que ele tem um senso de missão, de um dever a cumprir: a construção da cidadania LGBTQIA+ através das leis. Isso faz dele uma pessoa especial, mas não só.

Editar uma entrevista com o advogado não é uma coisinha simples. É difícil transcrever de uma maneira clara e simples para o grande público as complicadas teses do Direito Constitucional ao qual o paulistano se lançou para defender a cidadania LGBTQIA+.

Aos 40 anos e, portanto, ainda jovem para a posição que ocupa, Paulo já defendeu com sucesso junto ao Supremo Tribunal Federal alguns dos mais importantes processos para a nossa comunidade, como a defesa da legitimidade das uniões homoafetivas e o caso que equiparou a homotransfobia ao crime de racismo, apenas para citar alguns.

Formado em Direito no Instituto Presbiteriano Mackenzie desde 2005, o advogado fez mestrado na PUC-SP e seguiu pelo doutorado na unidade de Bauru da universidade, onde soube que a instituição era “focada em minorias e inclusão social”.

Incansável, Paulo tem o desejo de luta correndo nas veias. Ele conta para esta coluna com detalhes como tem sido a linha de frente no embate jurídico pelos nossos direitos e pela construção da nossa cidadania, ao mesmo tempo em que fala sobre a sua própria jornada pessoal como homem gay.

HÍBRIDA: Foi só no mestrado e foutorado que você se encaminhou para os direitos das minorias LGBTQIA + ou isso já era um interesse desde a graduação?

PAULO IOTTI: Já pensava. Comecei meu TCC em 2003, quando passei a estudar o tema: casamento civil, união estável e adoção por casais homoafetivos. Esse trabalho acabou se tornando meu primeiro livro, Manual da Homoafetividade.

H: Como era a sua vida pessoal enquanto homem gay nessa época?

PI: Em 2003, eu já era assumido como gay em casa e na faculdade, no escritório só em 2004. Já saía nas baladas gays com os amigos e conversávamos sobre as relações com nossas famílias, como nos assumir. Mas foi só em 2003 que esse tema virou objeto de estudo jurídico.

H: Como foi se descobrir gay?

PI: Eu sabia que era diferente desde os sete anos. Enquanto os meninos gostavam de meninas, eu preferia gostar de outros meninos. Enquanto os meninos gostavam de ver mulheres bonitas, eu adorava ver o Tom Cruise em Top Gun! (risos) Aos 13 anos, me aceitei pra mim mesmo.

H: Passou por algum tipo de discriminação na escola?

PI: Não. Mas você sabe daquele estigma de tornar-se gay. O jovenzinho não sabe do que se trata, mas sabe que é algo negativo. Mas, com 13 anos, fiquei consciente que sou gay e fiquei bem. Fiz Cultura Inglesa durante anos e sempre vinha para casa acompanhado de uma garota, que era minha amiga e pensaram que era minha namorada. Foi a mentirinha que contei para não desconfiarem da minha homossexualidade.

H: Mas quando se assumiu para a sociedade?

PI: Em 2002, quando tinha 20 anos.

H: Nessa época você já pensava em fazer Direito?

PI: Não. Aos 16, 17 anos que me preocupei com vestibular e fui fazer aqueles testes vocacionais. Falei com uma prima que fez Direito e ela me encaminhou para assistir a uma palestra na PUC, em 1999. Ela foi tão boa que em seguida vi outra palestra e me apaixonei pela profissão.

"Tem ministro que não quer nem te ouvir, te dá só 15 minutos e 'tchau, muito obrigado'", diz Paulo Iotti (Foto: Pedro Stephan | Híbrida)
“Tem ministro que não quer nem te ouvir, te dá só 15 minutos e ‘tchau, muito obrigado'”, diz Paulo Iotti (Foto: Pedro Stephan | Híbrida)

H: Como você foi parar diante do STF defendendo nossa cidadania?

PI: Começou em 2004, quando fui num congresso sobre bioética e sexualidade e conheci o pessoal da Associação da Parada do Orgulho LGBTQIA+ de SP. Comecei a frequentar a Parada e os seminários de formação para novos ativistas que eles faziam. Esses foram meus primeiros contatos com a militância.

H: Qual foi sua primeira ação judicial pela causa LGBTQIA+?

PI: Em 2007, houve uma ação civil pública do Ministério Público do Piauí pela doação de sangue igualitária. O juiz até deu uma liminar permitindo a doação de sangue, mas ela depois foi cassada. Fiz uma petição nesse processo pela Associação de Incentivo à Educação e Saúde de SP (AIESSP).

H: Como chegou às ações do STF?

PI: As primeiras foram sobre a união homoafetiva. Em 2009, fui amicus curiae pela AIESSP nas ações desse tema. Soube que dava para fazer a petição de “amigos da corte” (uma entidade especializada que leva elementos ao Supremo) e fiz.

H: Deu tudo certo? Como foi a recepção pelos ministros?

PI: Fomos bem sucedidos. Fui para Brasília e o relator foi o ministro Ayres Britto. Ele me recebeu por mais de uma hora, com dois assessores, perguntando minha opinião, como eu interpretava vários temas e foi muito aberto ao diálogo. Todo mundo sabe que nem sempre é assim. Tem ministro que não quer nem te ouvir, te dá só 15 minutos e “tchau, muito obrigado”.

H: O que aconteceu em seguida?

PI: O Supremo pautou o julgamento no início de 2011. Eu me programei e fui para Brasília fazer a sustentação oral. Tinha sete advogados favoráveis e dois contrários. Fui o sétimo a falar favoravelmente. Tivemos a vitória histórica do Supremo, com o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como família homoafetiva protegida pelo Direito, com igualdade de direitos da família heteroafetiva. Foi uma decisão por unanimidade, isso ninguém esperava.

Foi uma decisão que, além de unânime, teve um tom anti-discriminatório muito grande. Isso animou o movimento LGBTQIA+

H: Como foi uma votação que começou num dia e terminou no outro, acha que a posição favorável da mídia e da opinião pública influenciou?

PI: Havia um burburinho de que três ministros iriam votar contra. No primeiro dia, a imprensa e a mídia em geral elogiaram bastante o voto favorável do ministro Ayres Brito. Ele leu o voto e suspendeu o julgamento para o dia seguinte. Acho que isso ajudou.

H: O que aconteceu depois desse imenso êxito?

PI: Tudo que narrei foi em 2011. No final aquele ano, houve a segunda Conferência Nacional LGBTQIA+, na qual participei pelo poder público, representando o Centro de Cidadania LGBTQIA+ de São Paulo. Nessa hora, o movimento me procurou: o Julian Rodrigues e outros ativistas ligados ao PT, como a senadora Marta Suplicy (que tinha acabado de se eleger) perguntaram se eu poderia fazer uma ação para o STF reconhecer a homotransfobia como crime.

H: E você aceitou?

PI: Sim. Eu já conhecia a tese da homofobia como crime de racismo, que foi criada por um desembargador aqui de São Paulo, o Guilherme Nucci, que tem alguns dos livros de Direito Penal mais lidos. Em dezembro de 2013, fiz a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão número 26, pelo PPS (atual Cidadania), através do parlamentar Eliseu Neto. Foi o único partido que topou.

H: No dia, como foi fazer a defesa diante do Supremo?

PI: Nós éramos cinco advogados: eu, Alexandre Bahia e Thiago Viana como gays; a Maria Eduarda Aguiar como trans; e a Ananda Puchta, lésbica. Cada um tinha 15 minutos para falar, então disse para a assessora do Supremo: “Olha, esse é um tema tão decisivo, digno de Suprema Corte. Eu precisaria de pelo menos 20 minutos para abordar os temas com calma. Será que não dá para falar com a presidência para ver se é possível?”. E então, me chamaram e disseram que eu teria esse tempo. Cada um de nós falou explicando não só a parte jurídica, mas a situação pavorosa da comunidade sendo vítima da homotransfobia. E o Supremo aceitou nossa tese.

H: Além da vitória histórica e uma imensa visibilidade, o que mudou em sua vida a partir daí?

PI: Eu virei um mini-influenciador no Instagram: fui de 2 mil seguidores para 8 mil, depois para 10 mil e continuo crescendo. Uma coisa que me surpreendeu e me deixou feliz. Afinal, fui para o Supremo falar o juridiquês do juridiquês e, apesar disso, minha fala foi compreendida também pelo público em geral.

H: Neste momento, temos a homofobia incluída no crime de racismo. Mas a Constituição, quando fala em maneiras de discriminação, usa a palavra “sexo” e não “orientação sexual” para se referir a isso. Você não acha que um dos alvos no futuro da militância jurídica LGBTQIA+ seria alterar esse trecho para incluir o termo “orientação sexual”?

PI: Acho importante ser colocado na lei e na Constituição os avanços que temos conseguido no Supremo. É um procedimento mais seguro, pois é mais difícil mudar a lei e a Constituição do que mudar a jurisprudência. Durante a constituinte de 1988, a militância tentou incluir o termo “orientação sexual” e não conseguiu. Mas é algo para almejarmos no futuro.

H: Como vê a luta jurídica que acontece agora?

PI: Uma crítica minha é que muita gente acha que os projetos de leis só devem ser votados pelo Congresso se tivermos certeza absoluta de vitória. Acho isso um erro. Por exemplo, o casamento civil igualitário se tornou lei em outros países após ter perdido uma vez. Na verdade, acredito que se o Congresso votar negativamente e perdermos, aí o Supremo estará mais legitimado a continuar nos protegendo.

H: Como assim?

PI: O Supremo tem que ser contramajoritário garantindo os Direitos Humanos das minorias, que estão na Constituição. Democracia é um regime que a maioria manda, mas desde que se respeite os direitos básicos das minorias.

Alguns ativistas acreditam que uma votação negativa no Congresso seria traumática para a população LGBTQIA+. Talvez seja verdade, mas isso é inerente à luta política

H: Para o futuro, quais são as principais frentes da luta LGBTQIA+ na área jurídica?

PI: Penso que o direito das pessoas intersexo é uma lacuna no Brasil que precisa ser enfrentada e sanada. Uma hora a gente vai ter que enfrentar o Conselho Federal de Medicina ou entrar com uma ação direta no Supremo para que parem de mutilar bebês intersexo, gerando dores crônicas e esterilidade. Escondem da pessoa sua condição, ela chega na idade adulta sem saber que é intersexo e acaba descobrindo após os 30 anos.

H: Além disso, o que mais falta?

PI: O banheiro das pessoas trans. Temos um processo no Supremo com dois votos favoráveis, mas estamos com um “perdido de vista” do ministro Luiz Fux desde 2015. Já teve algumas decisões favoráveis em instâncias de baixo, onde estavam discutindo se é dano moral não deixar uma pessoa trans usar o banheiro feminino. Automaticamente, gera o direito de ela usar o banheiro feminino.

H: Mas existe também um movimento jurídico contrário a isso, não é mesmo?

PI: Algumas leis municipais estão vinculando uso do banheiro a sexo biológico, então podemos entrar no Supremo contra elas.

H: Por que você não fez isso ainda?

PI: Quando eu ia fazer isso, o Supremo pautou a mudança de nome de pessoas trans sem cirurgia. A seguir, pautou a homotransfobia como racismo. Em 2020, ele julgou a doação de sangue igualitário. Eu estava em todos esses processos. Acho que não podemos sobrecarregar o STF com ações LGBTQIA+ o ano inteiro. E eu estava exaurido, não tinha forças para fazer várias ações ao mesmo tempo.

H: Além dessas demandas, existe mais alguma que considere urgente?

PI: Outra questão polêmica é a mulher trans no esporte feminino. O direito delas está reconhecido pelo Comitê Olímpico Internacional. Mas nós estamos lutando contra projetos de lei estaduais que querem proibir isso. Aqui, na Assembleia Legislativa de SP, unimos várias entidades, como a Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB de SP e o mandato de Érica Malunguinho (PSOL), e conseguimos barrar esses projetos.

H: Há mais alguma conquista importante a ser alcançada?

PI: Sim. Tirar a nossa lei anti-discriminação do papel, fazendo os casos de homofobia serem investigados e punidos cada vez mais. Ainda temos muita resistência nas delegacias. Eu participei, no Conselho Nacional de Justiça, da criação do formulário de atendimento ROGÉRIA, de avaliação de risco à população LGBTQIA+. Ele visa uniformizar o atendimento nas delegacias para criarmos o mapa da homofobia denunciada. E então, sabendo onde e como ela acontece, poderemos criar políticas públicas para a comunidade.

H: Após quatro anos de um governo de extrema-direita, o que você espera do governo Lula no aspecto Executivo e Legislativo?

PI: Não espero milagres. Espero a saída do inferno e o início da reconstrução do País. O orçamento deste ano foi destruído por Bolsonaro na sua tentativa de vencer a eleição a todo custo. Para além dos relevantíssimos programas sociais que conseguiram financiamento, teremos mais aprovação de metas para serem construídas ao longo do mandato.

H: O que espera do Conselho Nacional LGBTQIA+ ?

PI: O Conselho Nacional LGBTQIA+ entra na lógica dos Conselhos, em geral, de fazer avaliações e propostas ao governo federal. No caso, para proteção da população LGBTQIA+ e enfrentamento da homotransfobia. Normalmente, os Conselhos não são deliberativos, mas só consultivos/opinativos, então dependerá de o governo acolher ou não suas propostas – isso para qualquer Conselho, não só o nosso.

H: Você tem expectativa de uma frente parlamentar com quorum para aprovar leis a favor dos LGBTQIA+?

PI: Frente Parlamentar LGBTI+ é difícil nesse Congresso tão reacionário. Certamente teremos parlamentares engajados(as), entre aliados(as) já históricos(as), junto com novos(as). As deputadas trans Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG) certamente ajudarão bastante. No mínimo, teremos uma forte bancada de resistência escancarando homotransfobias institucionais e sociais diversas, lutando contra retrocessos e pautando nossos direitos humanos. Foi noticiado também que “a Câmara dos Deputados também terá a presença de Clodoaldo Magalhães (PV-PE), gay; Daiana Santos (PCdoB-RS), lésbica; e Dandara (PT-MG), bissexual”. Confesso desconhecer suas histórias, mas espero que colaborem com Erika e Duda na luta por nossa cidadania sexual e de gênero LGBTQIA+.


Pedro Stephan é fotógrafo e jornalista, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Trabalhou na imprensa LGBTI+ do Brasil, em veículos como Mix BrasilG MagazineG Online e Sui Gêneris Press. Já expôs seu trabalho na Inglaterra, Portugal, Espanha e Itália bem como nos prestigiados salões do eixo São Paulo-Rio.

**O autor é integralmente responsável pela veracidade dos dados, pelas opiniões e pelo conteúdo do trabalho publicado.