Na primeira coluna Playlist de 2025, Fabiano Moreira* comenta os principais lançamentos musicais de artistas LGBTQIA+ que abriram o ano. A leva de novidades em janeiro inclui os álbuns de FKA Twigs e RuPaul; EPs de Tiffany Boo e Amandona; além dos singles de Olly Alexander, Wes e Urias, Daniela Mercury, Jão, Enme e Uana, Raquel e O Poeta e Traemme.

Abaixo, confira a seleção. E não deixe de seguir também a nossa playlist para não perder os próximos lançamentos.

FKA Twigs – “Eusexua”

Eusexua já é o maior acontecimento da indústria musical este ano, atingindo de cara o maior número de reproduções em um único dia para um álbum feminino lançado no Spotify, acumulando um total de 5,75 milhões de plays em sua estreia. Na Pitchfork, o álbum ganhou nota 9.2, deixando pra trás o Brat, de Charli xcx (8.6); e o Motomami, de Rosalía (8.4). No Xuíter, memes empolgados compararam a obra aos clássicos Post (1995), de Björk; e Ray of Light (1998), de Madonna. “Eusexua” é um neologismo criado pela artista para descrever a “sensação de estar tão eufórico” que alguém poderia “transcender a forma humana”. “Eusexua é para as garotas que encontram seu verdadeiro eu sob um estilete prateado de metal duro no chão úmido da rave”, diz parte do texto sobre um vídeo que ela publicou no TikTok.

“Eusexua é uma prática. Eusexua é um estado de ser. Eusexua é o auge da experiência humana”, diz o cartão de título no final do vídeo para a faixa-título do álbum. Ao Standard, Twigs declarou que é “aquele momento do nada, pouco antes de uma grande onda de inspiração, criatividade ou paixão. Eu descrevo isso como um momento antes de um orgasmo”. O álbum transita do techno ao house, do garage ao drum and bass, como uma carta de amor à dance music. Eusexua é descaradamente Eurodance; “Girl Feels Good” tem guitarra e salto midtempo de “Ray of Light”, de Madonna; “Perfect Stranger” é um retropop garage; “Keep It, Hold It” tem batida house e solenidade coral; a balada “Striptease” é pós-trap, uma tempestade de drum’n’bass. Um álbum que refaz o pop, com colaborações de Eartheater e Koreless, North West, na minha faixa favorita, “Childlike things”, e Dylan Brady

RuPaul – Good Luck and Don’t F%ck It Up

Todo janeiro é sempre igual: começa uma nova temporada de RuPaul´s Drag Race America, o programa original da franquia, e Mama Ru, a bicha mais capitalista da comunidade, aproveita para lançar um álbum de dance music calcado no amparo do autotune. Este ano, Good Luck and Don’t F%ck It Up é um volume mais curto que o habitual, mas funciona com um dance-pop decentemente produzido e alguns momentos divertidos. Exagerado e doce, captura muito bem a energia de RuPaul como drag queen: enérgica, animada e glamourosa.

Tiffany Boo – Requengela

A última sextada de 2024 foi com meu amigo virtual e talentoso multiartista Rawi, de Santarém, no Pará. Pois, por meio de suas mídias, tive acesso a outra artista potente do estado, a drag queen Tiffany Boo, do periférico Conjunto Maguari, na Grande Belém, com quem ele gravou a faixa “Encanto”, que está no  EP de estreia ela, Requengela. O volume ressignifica a expressão, que no vocabulário popular do paraense denomina algo desleixado ou feio e, no trabalho, é uma declaração de resistência e orgulho, mostrando que, mesmo em um contexto marginalizado, a arte pode se elevar e conquistar seu espaço. O EP traz frescor e inovação ao tecnobrega, com influências de carimbó, música eletrônica (EDM) e ragga. “Na periferia, nas aparelhagens, em todos os lugares, existem pessoas LGBTQIA+ que crescem consumindo e também trabalhando direta ou indiretamente com o tecnobrega, mas não temos muitas referências de cantoras e cantores LGBTQIA+. Eu me lancei na música pra ocupar esse espaço, mostrar que é possível. Quero que as manas, os manos e as monas vibrem quando tocar minha música num rock doido e sintam orgulho de ver nossa comunidade no topo”, declara. Na produção musical, colaborações com nomes importantes da cena, como os produtores Tony Link, Rodrigo Camarão, Jr Santorini, além das participações de Rawi e do guitarrista Bizet. 

Amandona – “Intensa”

Qual adjetivo descreve melhor a comunidade sáfica do que Intensa, palavra que também dá nome ao bom EP da grande vocalista e compositora mineira Amandona, uma grata supresa desta Playlist de janeiro, em volume com direção musical da monumental Luiza Brina. “Mulher, você me dá água na boca”, canta, na faixa-título. Além desta canção e da autoral “Pode ser que eu seja”, ela faz um delicado cover de “Maluca”, de Luiz Capucho, mas eternizada na voz de Cássia Eller. Amandona é nova voz da música brasileira, com um timbre marcante que se mostra nessa sua “reapresentação artística”. A faixa que abre o volume, Pode ser que eu seja”, nasceu de um papo com o parceiro de composição Lucca Trezza, de Governador Valadares. “Queria fazer uma música que transmitisse uma coisa meio ‘sou o que sou, não o que acham‘, tipo ‘sou o que sou e agora gosto de mim’, num sentimento da linha ‘sou grandona’ e, ao mesmo tempo, ‘não me siga, estou perdida'”, diverte-se.

Wes, Urias, Carlo e Lastra – “Kawasaki”

O cantor, compositor, stylist, produtor cultural e DJ Wes quase quebra a internet numa sexta à noite, horário incomum para lançamentos, com o clipe bombástico e sensual de “Kawasaki”, que traz a diva Urias pintada como uma moto, emulando a Motomami de Rosalía. “Acionei o pretinho vamo de menage / Chupando buceta sabor chocolate / Mamando piroca enquanto ele bate”, canta, no clipe que tem até participação do webastro pornô, o simpaticão Gabriel Coimbra, besuntado com um “pouquinho de óleo”. A faixa, lançada em setembro do ano passado, mistura rap, afrobeat e pop eletrônico, com produção de Carlo & Lastra. “Vamos dar uma volta, quero te fazer sentir”, canta Urias, que criou a música com o cantor, a partir do beat de outra faixa dele, “Tô solteiro, bb”.

Olly Alexander – “When we kiss”

Se tem um artista queer talentoso é o cantor, compositor e vocalista britânico do projeto Years & Years, Olly Alexander, que acaba de lançar o single “When we kiss”, prévia de seu próximo álbum, Polari, que chega em 7 de fevereiro pela Polydor Records. O projeto promete uma mistura de synth-pop e letras introspectivas, como “we can make a choice, change our destiny / when we kiss”, que ele canta dentro de um aquário inspirado na estrutura do panóptico de Michel Foucault. Polari apresentará faixas lançadas anteriormente, incluindo o hino “Dizzy”, a terna “Cupid’s Bow” e a etérea “Archangel”. Coescrita com o renomado produtor Danny L Harle, When We Kiss” mostra a habilidade de Olly para entrelaçar paisagens sonoras oníricas com narrativas pungentes. Esse é o primeiro projeto solo e completo do artista, marcando uma nova era em sua carreira. 

Daniela Mercury – “Axé Salvador”

Ao mesmo tempo em que certas cantoras trocam nome de orixá por equivalente católico, Daniela Mercury emerge soberana como a Rainha do Axé, comemorando os 40 anos do ritmo emAxé Salvador”. A música ganhou um belíssimo clipe gravado ao vivo no 1º de janeiro, que marca também os 25 anos do seu projeto Pôr do som, no Farol da Barra, em Salvador. “O axé é a beleza que evita a tristeza / A mulher, a melodia da correnteza”, rima Daniela, citando blocos afro como o Ilê Aiyê e o Muzenza e saudando os orixás com uma melodia orquestrada de samba-reggae. A canção nasceu a partir de um projeto do YouTube, o Camp Well Versed. A convite da plataforma, a artista abriu uma sala de composição no estúdio para criar com parceiros convidados, como Pierre Onassis, Aila Menezes, Gabriel Mercury, Juliano Valle, Edu Casanova, Topera e Filipe Escandurras, além da empresária e jornalista Malu Mercury, sua esposa.

Raquel e O Poeta“Consumo”

A belíssima voz de Raquel Virgínia caiu como uma luva no suingue contagiante do pagodão baiano de “Consumo”, faixa lançada pela dupla Raquel e O Poeta. “Se você quiser me consumir / E depois sumir / É teu fetiche e eu amo”, provoca enquanto convida ao “Taca, taca, taca na boneca e vai embora”, avisando que o par “é só mais um na prateleira”. Bem carnavalesco. A dupla de cantores parou a Feira de São Joaquim, em Salvador, para gravar o clipe da faixa neste Mês da Visibilidade Trans. “Tinha que ser na Bahia, lugar da mistura, onde as fronteiras do preconceito são atravessadas pela alegria e pela liberdade; onde um homem hétero pode contar uma história divertida ao lado de uma mulher transexual sem problemas. Eu quero falar com o povão dessa terra ímpar, servir diversão, dança, ousadia e fazer pensar. Se foi na Bahia que descobriram o Brasil, é lá que quero me redescobrir”, conta a artista. A faixa faz parte do projeto Raquel à venda, um trabalho no qual ela assume uma personagem pop que quer falar do capitalismo e do consumo, como uma fotografia social contemporânea.

Enme e Uana“Lua Cheia”

A talentosa artista maranhense Enme é figura recorrente aqui na Playlist antes mesmo da participação em Caravana das Drags, graças à qualidade de sua produção musical. Em janeiro, a gata sereiou suave com o lançamento de “Lua Cheia”, faixa que transita por elementos de amapiano e reggae e traz a participação da pernambucana Uana, já antecipando o seu próximo EP, previsto para março. A música é uma parceria com os craques Kafé (sou muito tiete) e Gabriel Matias e fala de amores impossíveis, intensidade dos sentimentos e magia dos encontros românticos à beira-mar. Os baixos acentuados e a atmosfera afrobrasileira presentes na canção são fruto de um cuidadoso processo de pesquisa e imersão. As gravações aconteceram em Recife e São Paulo, resultando em uma parceria que combina doçura, sensualidade e carisma. O lindo videoclipe tem direção criativa de Hyago Yury.

Radiola Serra AltaBaião Não-Binário (Shigara Remix)

Shigara é DJ, produtore musical, cantore e guitarriste de Belo Horizonte, residente da festa Horny e fundadore do coletivo Veludo, e assina o remix de “Baião Não-Binário”, do Radiola Serra Alta, de Pernambuco. O visual é impactante, vibrante, um acontecimento (como dá pra sacar no clipe de “Empinadim”). Seu set já me foi indicado por várias pessoas de quem gosto de ouvir a opinião. Shigara já tocou em festivais como Sarará (BH), Sensacional (BH), Rock The Mountain (RJ), The Town (SP) e Universo Paralello (BA), com um projeto que mescla discotecagem e Live PA. Seus sets e produções têm a percussão como elemento marcante em diferentes ritmos brasileiros e latinoamericanos, característica notável na atmosfera dançante, sedutora e intensa do seu EP de estreia, Sambaqui Arranha-Céu (2023). 

Traemme e Agrada Gregos – Me agrada

“Então me bota com pressão”, canta a musa trans Traemme, cada dia mais belíssima e gostosa, com um corpaço à mostra no clipe da música “Me agrada”, lançada em parceria com o bloco paulistano LGBTQIA+ Agrada Gregos. A Híbrida está de olho na gata desde a sua estreia com “Sou eu”, parceria com Kako; e da vibrante “Me ama que eu sei”, duas versões animadas. “Vou fazer todo o carnaval junto ao bloco, unimos forças. A gente pensou em uma música bem dançante, animada, pras pessoas se divertirem e aproveitarem o carnaval”, me conta Traemme. “Eu já tô molhada, então coloca tudo em mim”, ela canta na letra, bem safadinha, como a gente quer ser no Carnaval. E sabemos bem o que agrada gregos, né?

Jão – “Meninos e Meninas F.C.”

Tá um clima gostoso de vestiário misto só com gente linda e altamente beijável no clipe de “Meninos e Meninas F.C.”, uma ação comercial conjunta de Jão e Adidas que foi um estouro de vendas com as camisetas nas cores bandeira bissexual. No clipe, ele pega Gab Ferreira e João Lacerda, e é tudo muito leve, legal, moderno, como a vida e o verão têm que ser. O vídeo foi produzido pela UFO, exaltando a nossa comunidade LGBTQIAP+, tão defenestrada na posse de Trump e nas novas regras dos canais de social media. Que o sentimento multiplique e transborde.

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*Fabiano Moreira é jornalista desde 1997 e já passou pelas redações de O Globo, Tribuna de Minas, Mix Brasil, RG e Baixo Centro, além de ter produzido a festa Bootie Rio. Atualmente, escreve no Baixo Centro, fazendo a Sexta Sei, e aqui na Híbrida.


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