Reza a lenda e diz o bom senso que todo gay, em algum ponto da vida, encontra uma diva para chamar de sua. Cléopatra, Maria Antonieta, Judy Garland, Madonna, Gal, Bethânia… Em todos os momentos da história e lugares do mundo, mulheres destemidas, poderosas, imponentes e contraditórias despertaram um fascínio meio inexplicável em outros homens que também não se encaixavam em um mundo pensado e mantido por um sistema inevitavelmente masculino. Pra mim, essa figura é Britney Spears, que lançou na última semana sua autobiografia A Mulher em Mim (Ed. Buzz), na qual ela declara, entre muitos traumas vividos e desafios superados, um “amor incondicional” por seus fãs gays.
“Para mim, é tudo sobre amor — amor incondicional. Meus amigos gays sempre me protegeram, talvez porque soubessem que eu era inocente”, escreve Britney, afirmando que tem “uma relação especial com a comunidade LGBTQIA+”. “Não é tolice, é muito gentil. E acho que muitos dos gays ao meu redor me apoiaram. Eu podia até sentir isso no palco quando eles estavam ao meu lado. Se eu achasse que não tinha feito uma boa apresentação, poderia contar com os meus amigos, que percebiam que não me sentia bem com isso e ainda assim me diziam: ‘Você foi muito bem!’.”
Esse tipo de amor significa tudo para mim
– Britney Spears, sobre seus amigos gays
O livro narra desde o momento em que a pequena Britney sonhava em ser uma estrela no interior dos Estados Unidos até o momento em que esse sonho vira pesadelo graças à atenção e à cobrança constantes da mídia, dos fãs, da indústria e da sua própria família. Ora com humor e ironias, ora com ódio e incredulidade, ela desabafa sobre todos os perrengues pessoais e barreiras profissionais que precisou enfrentar para ser respeitada como artista e mulher.
Ao falar sobre seus fãs gays, ela explica como essa relação foi fundamental para que retomasse a vontade de viver e como estar próxima de pessoas LGBTQIA+ sempre fez com que ela se sentisse “viva” e “admirada”, fosse em shows de drag queens, em baladas ou nos bastidores. Mesmo ao relembrar sua infância, Britney deixa transparecer uma certa admiração pela comunidade, observando que sua mãe, quando ainda era colegial, costumava andar “com os caras gays da cidade, que lhe davam carona em suas motos”. Quando criança, eu sentia esse mesmo fascínio por ela.
Para quem cresceu na virada dos anos 1990 para os 2000, Britney Spears foi inescapável. Ela passava constantemente na TV, fosse pelos videoclipes ou pelas notícias escandalosas, tocava diariamente na rádio, estampava capas de revistas nas bancas e era assunto nas rodas de conversa do recreio. Não à toa, ela se manteve por quase uma década como a celebridade mais buscada no Google e um símbolo quase oficial do que o “sonho americano” vendia.
Como uma criança e, depois, adolescente lutando contra a própria sexualidade, a forma como Britney exibia a dela em seus clipes, performances e músicas era quase uma permissão para ser e desejar quem eu quisesse, mesmo que ainda fosse muito jovem pra entender isso nesses termos. Mas de alguma forma, eu absorvia essa segurança e autoconfiança que ela demonstrava através de alguns muitos detalhes aqui e outros traços nem tão subliminares ali: no icônico beijo que ela dividiu com Madonna, nas roupas que seus dançarinos usavam, no jeito que ela tocava suas dançarinas e si mesma, na bateção de cabelo, na confiança com que dançava em um terninho ou apenas com cristais…
A maneira natural com que Britney se relacionava com pessoas LGBTQIA+ também não me passava despercebida. Das entrevistas no programa de Rosie O’Donnell à forma como tratava fãs, coreógrafos, modelos e dançarinos nos bastidores, ela parecia tão à vontade, amigável e confortável na presença de outros homens gays que sutilmente eu passei a perceber que era possível ser tratado com normalidade sendo quem eu era.
“Eu tinha medo de dizer a alguém, principalmente por causa do ‘N Sync”, disse Lance Bass, contando em uma entrevista de 2015 que Britney foi uma das primeiras pessoas para quem teve coragem de se declarar como gay. “Eu a levei para o quarto dela e estávamos sentados na cama e ela não parava de chorar. Então, eu disse, ‘Sou gay’. E ela parou de chorar e deu risada”, contou no programa Watch What happens Live. Esse e outros tantos depoimentos me deram ainda mais certeza do “amor incondicional” que ela declarou recentemente e que eu já desconfiava desde criança.
Britney pode não ser a aliada mais articulada ou politicamente engajada como, digamos, Madonna ou Lady Gaga, mas em todas as oportunidades que teve de defender e demonstrar seu apoio pela comunidade LGBTQIA+, ela o fez. Em 2011, ela disse à revista Out que “amaria seus filhos de qualquer forma” quando questionada sobre o que sentiria se eles fossem gays e que “todos deveriam ser tratados igualmente” ao comentar o que pensa do casamento homoafetivo.
Em 2016, quando um terrorista matou 49 pessoas na Pulse, uma boate gay em Orlando, Britney se uniu a outros 23 artistas como RuPaul, Troye Sivan, Adam Lambert e P!nk e, juntos, lançaram a música “Hands”. Todos os lucros obtidos com a venda do single foram revertidos em doações para os familiares das vítimas.
Mais tarde, em junho de 2017, a Billboard pediu que vários artistas escrevessem uma carta de apoio à comunidade LGBTQIA+. Segundo a publicação, Britney foi a única da lista que enviou uma mensagem escrita à mão, acompanhada de uma foto.
Essa é minha carta de amor para todos os meus fãs LGBTQ . Continuamente ao longo da minha carreira, vocês sempre têm sido tão vocais sobre o impacto positivo que tive em vocês — que eu lhes dei alegria, esperança e amor em momentos que não havia nada disso. Que minha música é uma inspiração. Que minha história lhes dá esperança.
Mas eu tenho um segredo para dividir com vocês. Veja, é vocês que me dão forças de levantar. A lealdade inabalável. A falta de julgamentos. A verdade sem remorsos. Aceitação! São suas histórias que me inspiram, me dão alegria e fazem com que eu e meus filhos nos esforcemos para sermos pessoas melhores.
Eu amo vocês.
Britney
No ano seguinte, ela foi homenageada pela GLAAD com o Prêmio Vanguarda, a honraria máxima da organização, entregue às figuras da mídia que ajudaram a promover a luta e a visibilidade de pessoas LGBTQIA+. “Ela luta por aceitação da sua própria maneira”, disse Ricky Martin, ao apresentá-la.
Em uma rara aparição pública para a época, Britney foi até a premiação e fez um breve discurso sobre sua relação com a comunidade, onde já definia o vínculo que tem com seus fãs LGBTQIA+ como a prova de um “amor incondicional”:
Sinto que a nossa sociedade coloca tanta ênfase no que é ‘normal’ e ser diferente é visto como incomum ou estranho.
Mas ser aceita incondicionalmente e ter a oportunidade de me expressar como um indivíduo pela arte é uma bênção. Eventos como o desta noite mostram ao mundo que não estamos sozinhos.
Nós podemos nos dar as mãos aqui e saber que somos todos bonitos. E podemos nos apoiar, mostrando nossos dons sem medo.
Ser uma mãe me mostrou o que é amar incondicionalmente. E todos vocês aqui me mostraram ao longo da minha carreira o que significa ser amada incondicionalmente.
A forma como Britney teve seu corpo, seus comportamentos e sua sanidade questionados, julgados e criticados publicamente em 2007, de alguma maneira, também ressoou comigo e, tenho certeza, com outras pessoas LGBTQIA+. No meu caso, era praticamente impossível como adolescente não ficar igualmente intrigado e admirado por uma mulher que atraía tanta atenção e escrutínio por simplesmente tentar viver a vida da sua forma e que, mesmo com todos os empecilhos, seguia fazendo exatamente isso, enquanto lançava músicas irresistíveis ao longo do caminho.
Não à toa, um dos muitos momentos que marcaram aquela época foi o vídeo de um fã, Cara Cunningham (à época Chris Crocker), chorando e implorando para que o mundo “deixe Britney em paz“. A frase “Leave Britney Alone”, além de ter se tornado um meme quando nem existia nome para isso, acabou sendo repetida à exaustão em fóruns e nas extintas comunidades do Orkut dedicadas à Princesa do Pop.
De alguma maneira, os fãs sempre souberam que a curatela controlando a vida de Britney tinha tirado um pouco do brilho nos olhos e do poder estelar que ela já demonstrou nos palcos do passado. No livro, ela admite que isso aconteceu e que, dentre as muitas frustrações, uma das maiores era não dar “o que eles mereciam, que era o melhor de mim”.
A preocupação aumentava à medida que os detalhes do caso surgiam nos últimos anos e, aqui, vale destacar o episódio particularmente cruel e revelado pelo New York Times, segundo o qual os responsáveis pela curatela desviaram milhões de dólares dos fundos de Britney para financiar uma igreja conservadora que realizava supostos “tratamentos de cura gay”.
Apesar de ter tomado proporções inimagináveis, o movimento #FreeBritney ganhou força em 2019, naqueles mesmos fóruns e páginas dedicados por décadas a Britney Spears. O estranhamento com seu sumiço, com o cancelamento de uma nova residência em Las Vegas e com a falta de certeza sobre seu bem-estar impulsionou multidões cada vez maiores de fãs indo para as ruas e pedindo que a artista fosse libertada do pesadelo que viveu por 13 anos. Em todos os documentários lançados recentemente sobre o caso, jornalistas e advogados citam como esse público protestando em frente aos tribunais era formado majoritariamente por mulheres e gays na casa dos 20 aos 30 anos.
No livro, Britney conta que quando o movimento começou, ela estava internada contra a sua vontade em uma clínica onde era drogada com lítio e tinha medo de ser morta pela própria família. Ela só descobriu a existência do movimento quando uma enfermeira decidiu lhe mostrar vídeos dos protestos em seu computador.
“Meus fãs, mesmo que eu não tenha dito nada online sobre estar em confinamento — eles simplesmente sabiam disso. Ver todos eles marchando nas ruas e gritando #FreeBritney — foi a coisa mais incrível que já vi na minha vida. A verdade é esta: estava sendo mantida presa contra a minha vontade. E eu ansiava em saber se as pessoas se importavam se eu estava morta ou viva” conta Britney.
The very first #FreeBritney protest in April 2019 vs. today. We’ve come a LONG way. pic.twitter.com/cQhTbqLH53
— Fan Account (@breatheonmiley) July 14, 2021
Desde que se viu livre da curatela, Britney tem andado cercada de pessoas LGBTQIA+, seja com seu novo empresário Cade Hudson ou com os amigos com quem tem postado vídeos se divertindo à beira da piscina para superar o divórcio do modelo Sam Asghari. A primeira música lançada em liberdade, “Hold Me Closer”, foi exatamente com Elton John, a quem ela não poupou elogios ao longo do livro.
O “amor incondicional” que ela tanto fala passa exatamente por isso e faz mais sentido quando analisado por esse prisma: assim como Britney apoiou as pessoas LGBTQIA+ desde o início da sua carreira há mais 20 anos e sem pedir nada em troca, também nos solidarizamos quando vimos que ela, assim como muitos de nós, estava refém de uma família que privava sua liberdade e tentava transformá-la em algo que não é, contendo sua sexualidade, seus desejos e sua criatividade.
“Se você fez algo por mim quando eu mesma não podia, do fundo do meu coração, obrigada”, Britney escreve no livro. De muitas formas, eu e muitos outros e outras que encontramos inspiração e esperança nela, agradecemos pelo mesmo motivo.