Jovens trans em geral têm afirmado cada vez mais o quanto é difícil imaginar seu futuro e que, embora seus amigos cis tenham sonhos para o futuro relacionados a carreiras, relacionamentos ou casa própria, suas próprias esperanças são muitas vezes limitadas pelo fato de terem dúvidas sobre o reconhecimento de sua identidade, de sua autodeclaração de gênero ser válida no acesso a direitos básicos e aos cuidados de saúde que precisam ter para serem eles próprios.
Uma pesquisa divulgada em abril no Reino Unido sugere que jovens trans estão lutando para se sentirem otimistas sobre seu futuro, ficando para trás em relação aos seus pares cisgêneros quando se trata de sonhar com a vida que os espera. Os números apresentados pela Just Like Us vêm de um levantamento independente encomendado pela organização de caridade para jovens LGBTI+, que será lançado em junho.
Ao todo, a ONG ouviu 2.934 estudantes (incluindo 1.140 LGBTI+ jovens), entre 11 a 18 anos, em 375 escolas e faculdades, entre dezembro e janeiro. A pesquisa descobriu que menos da metade dos jovens LGBTI+ (45%) se sentem otimistas sobre o futuro, enquanto entre os jovens heterossexuais e cisgêneros esse percentual chega a 64%. E ainda, que 14% dos jovens trans nunca se sentiram otimistas sobre o futuro no ano passado. Na verdade, apenas 35% deles se sentiram otimistas em algum momento da vida.
A violência institucional aparece como um dos motivos para a falta de expectativa do futuro para a juventude trans. Eles mencionam a preocupação com a organização de uma agenda contra os direitos trans e o aumento da hostilidade anti-trans em vários campos, além de um foco implacavelmente negativo de políticos e ativistas transfóbicos sobre suas existências.
Diante do aumento de leis anti trans, os Estados Unidos viram dobrar o número de assassinatos em 2021. Entre janeiro e abril do ano passado, foram mapeados dez assassinatos de pessoas trans, enquanto só neste ano já foram 17 casos no mesmo período. As vítimas são majoritariamente mulheres trans, 13 delas negras, como informa a Human Rights Campaign (HRC), responsável pelo mapeamento anual dos assassinatos por lá.
Ao The 19th, defensores LGBTI+ dos EUA denunciam que pelo menos 127 projetos de lei antitrans foram apresentados no país e mudaram radicalmente o clima por lá ao lançarem negatividade nas vidas trans. Propagar dúvidas públicas sobre a feminilidade de mulheres e meninas trans pode ser mortal, argumentam.
Transfobia na pandemia
O coronavírus tem sido usado para mobilizar retrocessos nos direitos trans e apresentar projetos de lei que visam institucionalizar a transfobia, empurrando essa população, que já enfrenta uma epidemia de violência, para a beira do abismo. Além do próprio impacto sanitário da crise provocada pela covid, defensores de direitos LGBTI+ sugerem que isso ocorre porque as pessoas transgêneras continuam enfrentando desproporcionalmente o desemprego, a falta de moradia e a falta de acesso a alimentos e cuidados de saúde na pandemia.
Uruguai e Espanha enfrentam diversos processos de disputas em relação à Ley Trans. Aprovada em 2019 no país americano, a legislação tem enfrentado campanhas violentas contra sua aprovação na Europa, unindo especialmente fundamentalistas religiosos a feministas trans excludentes aliadas a grupos de extrema direita.
No Brasil, já é possível fazer um mapeamento das proposições de diversos projetos de lei utilizando a narrativa de “proteger os direitos de mulheres e crianças” em detrimento dos direitos trans. A manipulação da opinião pública se dá em discursos constituídos de forma a criminalizar as existências trans e um suposto “risco que essas identidades representariam para a sociedade”. Assim, projetos que negam direitos e perpetuam estigmas seguem sendo apresentados, aceitos e defendidos nas câmaras e assembleias pelo País. E mesmo que sejam vencidos pela flagrante inconstitucionalidade, as ideias que defendem permanecem colocados na esfera social.
O foco principal de agenda antitrans mundial tem partido de uma ideia cissexista e absurdamente eugenista, que pretende não apenas aniquilar essas existências, mas impedir que novas gerações possam existir livremente e com acesso a direitos sem qualquer tipo de discriminação.
As falaciosas narrativas utilizam de pânico, atribuição de estigmas e medo em relação à população trans. Para justificar a proibição de mulheres trans no esporte feminino, se diz defender o lugar conquistado pelas mulheres cis, as quais estariam ameaçados por “homens biológicos (sic)”. Há também a tentativa de impedir o acesso a cuidados de saúde, a transição social por jovens trans e ainda a disseminação da suposta existência de uma “epidemia trans por contágio social”.
Sobre questões relacionadas ao uso de espaços unissexuais por mulheres trans, o argumento é de que elas expõem mulheres cis a um suposto risco aumentado de exposição a “predadores sexuais (sic)”. Esses são os principais pontos de alinhamento entre as forças conservadoras historicamente antitrans, atuando em conjunto por vários países com o apoio de feministas radicais e grupos LGB transfóbicos.
Diante de tais absurdos, tenho refletido se a mensagem que está sendo passada para essas crianças e adolescentes trans é a de que suas vidas não importam. Acredito ainda que muitos devem pensar que sua existência seria ofensiva à sociedade e que devem sentir — como eu senti — uma “falta de controle” sobre suas vidas ao não terem autonomia adequada sobre quem são, seus corpos e suas escolhas.
Há ainda o perigo de que esta mensagem seja internalizada no sentido de lhes fazer acreditar que “há algo errado comigo e eu mereço ser punido”. Ressalto aqui que a vergonha e o ódio internalizado por essa movimentação antitrans podem ter repercussões devastadoras ao longo de toda a vida desses jovens trans, especialmente em relação aos impactos na saúde mental e na dificuldade de convívio em sociedade, contribuindo para casos de ansiedade, depressão e fobia social, podendo levar até ao suicídio.
Afinal, o que as pessoas temem ao conceder às pessoas trans o direito de explorarem suas identidades?
“Destransição” de gênero
Pesquisas mais recentes sobre transição de gênero sugerem que quem transicionou está feliz com sua decisão, enquanto apenas uma pequena minoria optaria por uma “destransição” posterior.
De acordo com um levantamento da National Center for Transgender Equality, realizada com 28 mil pessoas transgêneras ou de gênero diverso nos Estados Unidos, apenas 8% delas relataram alguma forma de “destransição” ou arrependimento em relação à escolha.
No entanto, 62% das pessoas que relataram esse arrependimento declararam destransicionar apenas temporariamente e, hoje, vivem em tempo integral como o gênero diferente daquele que foi designado ao nascimento.
Algumas das principais causas de “destransição” apresentadas pelos entrevistados foram: pressão de algum familiar (36%); excesso de discriminação e constrangimento (31%); dificuldade em encontrar emprego (29%); e pressão do seu empregador (17%).
Daquelas pessoas que destransicionaram, apenas 5% disseram que o motivo era perceberam por si mesmas que a transição não era adequada para elas (apenas 0,4% do total da amostra). Estes dados sugerem que 95% das pessoas que passaram por alguma experiência de “destransição” estariam mais predispostas a afirmarem uma identidade trans e/ou retransicionarem em um ambiente social mais favorável.
Vale destacar que, na realidade, a maioria das pessoas que destransicionam o fazem por sofrerem transfobia, não porque foram “obrigados a ser trans (sic)”. “Destransição” — que é algo real e super possível de acontecer – está muito mais ligada à patrulha de nossos corpos, à violência transfóbica para a manutenção do cissexismo e à dificuldade de romper com a cisgeneridade compulsória do que pensamos. Não à toa, existe uma forte influência e assédio de grupos religiosos na maior parte dos casos.
Diante de casos estatisticamente irrelevantes de arrependimento ou “destransição”, seria catastrófico chegarmos à decisão de um tratamento desenvolvido por especialistas – que se mostra eficaz, gera conforto, bem estar e apresenta resultados satisfatórios – ser excluído de uma maioria da população, que o considera útil e poderia se beneficiar dele. Em termos morais, éticos e legais, isso causaria perda de direitos à maior parcela que pode e quer usufruir desse direito.
Quando o assunto envolve pessoas que acreditaram ser trans enquanto ainda entendiam a própria identidade de gênero, não vai faltar fundamentalista religioso e/ou teórico de gênero achando que isso seria suficiente para provar que “pessoas trans não existem” ou são uma espécie de “moda”; ou ainda que há uma “lavagem cerebral do ativismo trans para converter ou incentivar pessoas cis a transicionarem (sic)”. Exatamente o mesmo discurso que utilizam no espantalho da “ideologia de gênero”: de que existiria um plano para transformar pessoas cis em trans.
E nesse sentido, é muito importante não homogenizar as experiências trans quando formos discutir questões sensíveis às vidas dessas pessoas. Também não é prudente generalizar a (in)capacidade de consentimento de cada pessoa, já que esse é um processo extremamente delicado e subjetivo. Deve-se considerar caso a caso, a partir de critérios e parâmetros muito bem implementados e desenvolvidos por especialistas, acompanhados por instituições médicas e focados na saúde trans.
Ter a liberdade de ser quem é, poder vivenciar sua transgeneridade na vida pública e ver suas identidade respeitada talvez seja o maior desafio para pessoas trans, que hoje têm a oportunidade de se reconhecerem cada vez mais cedo, muito em função das lutas históricas para criarmos um mundo mais acolhedor e inclusivo.
De certa forma, fica a impressão que vamos vivendo um dia após o outro, sem muitas projeções (ou expectativas) para o futuro. Inclua aí a dificuldade de acolhimento familiar, as violências de um ambiente escolar excludente e violento; o mercado de trabalho ainda fechado ao acolhimento de pessoas trans; a possibilidade ou não de realizarem modificações corporais, conseguir a retificação documental, constituir família e, obviamente, sobreviver às estatísticas de violência que limita nossa expectativa de vida aos 35 anos.
A invisibilidade leva ao assassinato. A mensagem que queremos deixar bem explícita — especialmente para a nossa comunidade LGBTI+ -, é que provavelmente nunca houve um momento tão grande de vulnerabilidade e violência a pessoas trans como o que estamos vendo agora.
É muito importante mostrarmos nosso apoio a esses jovens e também aos seus familiares, que também enfrentam perseguição e pessoas interferindo na forma com que pais decidem acolher seus filhos trans. Há muita expectativa de todos os lados, angústias e incertezas, e no meio de toda essa discussão há a vida de crianças em jogo.
Crianças trans, que merecem respeito, acolhimento, proteção e direitos como qualquer outra. E não podemos aceitar a imposição de narrativas tendenciosas, que podem gerar medo, culpa ou algo pior a essas pessoas sobre o desconforto que elas mesmas sentem.
Não podemos ser responsáveis por infligir ainda mais sofrimento e adoecimento psíquico a essa juventude. Todos os jovens trans devem ser capazes de ver a si próprios como válidos e com um futuro positivo pela frente — mesmo com o momento em que estamos vivendo.