Não restam dúvidas: 2024 é o ano de Lily Gladstone! A atriz venceu o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Drama no último domingo (7) e já é a favorita absoluta para ganhar boa parte dos demais prêmios de Hollywood nesta temporada pela excelência com que viveu a personagem Mollie Burkhart no último filme de Martin Scorsese, Assassinos da Lua das Flores,.

Durante seu discurso de agradecimento pela estatueta, Gladstone destacou a importância da presença de grupos minoritários na telona, ressaltando, com orgulho, sua origem como nativo-americana, criada na Reserva Blackfeet. “Isso é para cada criança nativa que tem um sonho e está se vendo representada em nossas histórias que são contadas por nós, em nossas próprias palavras e com uma tremenda confiança, um para o outro”, disse.

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A representatividade da atriz não para por aí: além de dar visibilidade às histórias dos povos originários, ela também tem aproveitado a temporada de premiações para falar sobre pronomes e suas relações com o binarismo da linguagem ocidental.

À revista People, Lily revelou se identificar como ela/elu (she/they), por acreditar que a adesão aos pronomes neutros é uma forma de descolonizar o gênero. “Meu uso de pronome é, de certa forma, uma maneira de descolonizar o gênero para mim. […] Na maior parte das linguagens nativas, nas línguas indígenas, incluindo a Blackfeet, não há pronomes significadores de gênero. Não há ele/ela, há somente elu (they)”, declarou.

A atriz também disse que, desde a infância, observava os danos do uso de pronomes binários: “Eu me lembro de ter 9 anos e ficar um pouco desapontada ao ver quão frequentemente meus primos recebiam pronomes errados aos que correspondiam às suas identidades de gênero só porque tinham cabelos longos. Isso acontece com muitas crianças, acredito, especialmente garotos nativos que partem de uma comunidade onde o cabelo longo é celebrado para então serem zoados por isso… Me lembro de, na época, achar que todos deveriam ser apenas ‘elu’ (they)”.

A fala de Lily é mais um exemplo da violência imposta pela colonização nas Américas, que além de ter explorado e exterminado os povos originários, também fez com que os sobreviventes tivessem suas identidades apagadas e hostilizadas. Saa personagem em Assassinos da Lua de Flores, inclusive, é baseada na história real de uma mulher da tribo Osage que sobreviveu a uma série de assassinatos nas décadas de 1910 a 1930, nos EUA.

Cena descrita por Pietro D’Anguiera em “De Orbe Novo”, com Vasco Nuñez de Balboa assassinando o irmão de um cacique no Panamá e 40 de seus companheiros por estarem vestidos de mulher, em 1513 (Gravura: Theodor de Bry | Reprodução)
Cena descrita por Pietro D’Anguiera em “De Orbe Novo”, com Vasco Nuñez de Balboa assassinando o irmão de um cacique no Panamá e 40 de seus companheiros por estarem vestidos de mulher, em 1513 (Gravura: Theodor de Bry | Reprodução)

O apagamento de costumes e identidades indígenas é criticado pelo antropólogo Estevão Rafael Fernandes, autor do livro Existe Índio Gay? – A colonização das sexualidade indígenas no Brasil. Em entrevista exclusiva à Híbrida, ele explicou como a LGBTfobia foi importada das caravelas europeias e falou sobre o papel dos tradicionais “two-spirit” (dois-espíritos), pessoas que se identificavam com um terceiro gênero que foi resgatado séculos depois pelos indígenas LGBTQIA+ dos Estados Unidos e do Canadá como uma forma de resistência contra valores cristãos.

“Dois-espíritos não se refere a um papel sexual, o que seria diminuir muito sua importância. É uma função religiosa, política e social. A questão sexual é apenas um desses aspectos – ou seja, nem todo indígena LGBT é two-spirit. A forma como eles entendem a sexualidade não é a partir de dois termos opostos (masculino vs. feminino), mas complementares. Não são dois pontos em extremos de uma linha, mas parte de um círculo onde estar masculino ou estar feminino são apenas duas opções, entre várias outras”, explicou.

Ainda há um longo caminho que precisa ser trilhado para tentar erradicar as consequências de tantos anos de preconceito, mas há a esperança de que pessoas como Lily Gladstone possam ganhar cada vez mais espaço em âmbitos que, no passado, foram negados a elas.

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