(O texto a seguir contém spoilers da 1ª e da 2ª temporadas de “Pose”)

Enquanto a indústria audiovisual continua estagnada em meio à pandemia do novo coronavírus, a largada para a temporada de premiações já foi dada pelo Emmy 2020, que anunciou na quarta-feira (28) a lista de indicados que concorrem na sua 72ª edição. A cerimônia de entrega está marcada para 20 de setembro e o evento será exclusivamente online, apesar de seu formato exato ainda ser um mistério. Inevitavelmente, é impossível agradar todo mundo e enquanto temos motivos para comemorar o recorde de indicações para atores negros, algumas ausências doeram mais que outras, como é o caso do elenco de “Pose”.

Pelo segundo ano consecutivo, Billy Porter foi o único ator de todo o elenco indicado por seu papel como o mestre de cerimônias do ballroom Pray Tell, pelo qual ele já venceu um Emmy no ano passado. Não me entendam mal, o trabalho de Porter na série é tão primoroso quanto seus looks nos tapetes vermelhos, mas seu desempenho na segunda temporada e o arco da sua história não o fazem se sobressair em nenhum momento quando comparado com o resto do elenco.

Pray começa a segunda temporada frustrado e furioso com a falta de ativismo por acesso a medicamentos do HIV/Aids e, no episódio final, confronta suas próprias transfobias e feminilidades internas, revelando uma nova faceta do personagem e do talento de Porter. Um de seus momentos mais fortes, porém, vem do início de seu relacionamento com Ricky (Dyllon Burnside), quando uma cena entre os dois atores foi amplamente celebrada pela crítica, muito em partes pela vulnerabilidade crua que é raramente mostrada na TV quando falamos em sexo entre dois homens gays e negros.

Relacionamento entre Ricky (Dyllon Burnside) e Pray Tell (Billy Porter) rendeu uma das melhores cenas da segunda temporada de "Pose" (Foto: Reprodução)
Relacionamento entre Ricky (Dyllon Burnside) e Pray Tell (Billy Porter) rendeu uma das melhores cenas da segunda temporada de “Pose” (Foto: Reprodução)

Certamente, a cena foi decisiva na indicação de Billy Porter e elevou o nível da temporada, mas não chega a representar a total profundidade que descobrimos dos personagens e, consequentemente, da força de interpretações do elenco ao longo desses 10 episódios. Inclusive, uma das maiores surpresas e apostas foi a forma como Angelica Ross encerrou seu ciclo na pele de Candy Ferocity.

Com poucas e breves aparições na primeira temporada, Candy agradou tanto o público que ganhou mais espaço como uma das figuras centrais no desenvolvimento da trama e, consequentemente, dos outros personagens. Mais ainda, Angelica Ross pôde abandonar o terreno caricato de esquentadinha barraqueira do grupo e teve a chance de brilhar (literalmente, como você vê no vídeo abaixo) na pele de uma pessoa com sonhos, carências e nuances que deixaram sua despedida ainda mais devastadora.

Angelica, inclusive, é talvez a maior e mais sentida ausência na lista de indicadas a atriz coadjuvante em uma série de drama pelo Emmy, principalmente pelo papel essencial que ela desempenhou na concepção do episódio “Never Knew Love Like This Before”. Houve uma campanha muito clara de roteiristas, colegas e produtores da série para que seu trabalho fosse reconhecido, mas aqui entramos no cerne do problema.

Na pele de Candy Ferocity, Angelica Ross viveu a história mais impactante da temporada, fugindo do estereótipo dado à personagem e ainda assim sendo esnobada por sua atuação (Foto: Reprodução)
Na pele de Candy Ferocity, Angelica Ross viveu a história mais impactante da temporada, fugindo do estereótipo dado à personagem e ainda assim sendo esnobada por sua atuação (Foto: Reprodução)

Enquanto a primeira temporada precisou focar nas regras e dinâmicas sociais que formam a cena ballroom e a forma como negros, latinos, trans e gays criaram um verdadeiro senso de comunidade entre si, a segunda é marcada por picos muito altos e vales muito baixos. Desde o primeiro episódio, vemos como o lançamento de “Vogue”, da Madonna, cria uma sentimento coletivo de esperança para os personagens, que é pouco a pouco estraçalhado de mil e um formas.

Elektra (Dominique Jackson) conquista sua independência financeira, mas ao mesmo tempo é obrigada a lidar com a morte de um cliente e a ingratidão de seus “filhos” mais jovens. Blanca (MJ Rodriguez) encontra o sonho do seu próprio salão de beleza em meio aos trancos e barrancos impostos por Patti LuPone e o pavor que sua personagem tem de ser associada a pessoas trans. Candy dá seu sangue pela ambição de ser coroada no ballroom, mas só consegue ser realmente enxergada depois de morta. E Angel (Indya Moore) descobre que o universo da moda é feito de mais abuso sexual e padê do que de flashes e passarelas.

Angel (Indya Moore) e Blanca (MJ Rodriguez) viveram os altos e baixos do início dos anos 1990 ao longo da temporada, com performances fortes e cheias de nuances (Foto: Reprodução)
Angel (Indya Moore) e Blanca (MJ Rodriguez) viveram os altos e baixos do início dos anos 1990 ao longo da temporada, com performances fortes e cheias de nuances (Foto: Reprodução)

Cada uma dessas histórias acima rendeu monólogos, diálogos e cenas extremamente fortes que descortinaram ainda mais a versatilidade do elenco feminino, além de render momentos virais e um ótimo material de campanha da série para o Emmy. Ainda assim, Billy Porter seguiu como o único ator indicado a algum prêmio.

O caso é mais absurdo quando analisamos “Pose” dentro do universo de produções chanceladas por Ryan Murphy, que desde “Glee” se mantém como um dos queridinhos das premiações. Na sua mão, as carreiras de nomes como Jessica Lange, Lady Gaga, Sarah Paulson, Gwyneth Paltrow e Lea Michele foram criadas, solidificadas ou revividas na TV. Logo, causa estranhamento que o elenco feminino da série com o maior número de atrizes trans na história seja esnobado pela segunda temporada consecutiva, algo inédito nas produções recentes de Murphy.

Para não dizerem que há uma completa ausência de pessoas trans na lista de indicações, Laverne Cox foi nomeada por sua participação especial na última temporada de “Orange Is The New Black” e Rain Valdez pela websérie “Razor Tongue”, criada e estrelada por ela mesma. Valdez se tornou a segunda atriz trans na história do Emmy a ser indicada, fazendo companhia à própria Laverne que carregava a honra sozinha até então (e que também fez questão de falar publicamente sobre a falta de reconhecimento para “Pose”).

Nas palavras da própria Indya Moore, há algo errado sobre pessoas trans não serem homenageadas em um programa sobre pessoas trans, que criaram uma cultura para se homenagearem porque o mundo não faz isso. E pode parecer apenas capricho cobrar que essas atrizes sejam indicadas a premiações por seus desempenhos, mas para o bem ou para o mal, são essas mesmas premiações que as validam, pelo menos por ora, na indústria cultural norte-americana.

Como também mencionado por Indya em uma série de tweets sobre o caso, instituições como o Emmy, o Oscar, o Grammy e o Globo de Ouro não só catapultam a carreira de um artista, mas são trunfos para negociar salários, contratos e também fatores determinantes para uma emissora renovar determinada série. É seguro dizer que “Pose”, com seu histórico já pioneiro de representatividade trans, tem ajudado a mudar a percepção dessas pessoas na mídia e, paralelamente, a criar uma nova imagem sobre elas no subconsciente geral.

Agora, o questionamento que fica é até quando isso será possível enquanto a série continua a ser esquecida nas categorias principais de premiações que são votadas pelas próprias pessoas responsáveis por manter a indústria cultural nos EUA ativa.

Confira aqui a lista completa de indicados ao Emmys 2020.

A primeira temporada de “Pose”  está disponível na Netflix, e é uma das dicas na nossa lista de 22 séries com temática LGBTQ para assistir durante a quarentena.