Falando para esta coluna com uma franqueza desconcertante, com respostas sempre prontas na ponta da língua, aos 41 anos Luana Hansen já é um ícone LGBTI+ do mundo da música de Sampa. A vida de Luana e seu caráter foram moldados pela adversidade: preta, periférica e lésbica, a MC ouviu muito não pelo caminho e também teve que lidar com o preconceito dentro do próprio mundo do Rap.

Mas Luana não se deixou intimidar, impôs seu trabalho, seu estilo e teve seu talento reconhecido aqui no Brasil e no exterior, seja como palestrante requisitada ou tocando sets e shows em outros países. Hoje em dia, seu nome é reverenciado no Hip Hop, um universo no qual entrou em meados dos anos 2000, com o grupo de rap A Força.

“Eu vivia nas esquinas de Sampa vendendo drogas. Um dia, um amigo passou de carro e me resgatou”, conta à coluna. Foi a partir dessa visita inesperada à casa de um rapper que ela se encontrou como artista e, quando deu por si, “estava de cabeça enfiada no movimento Hip Hop escrevendo rimas e tentando encontrar um espaço”. Não demorou muito e ela já estreava no palco da Fundação Casa de Tatuapé.

Hoje, com a mesma garra que conseguiu fazer sua voz de artista independente ser ouvida, Luana quer dar a outros sonhadores a oportunidade que batalhou para alcançar. Ela montou um estúdio próprio no interior de São Paulo e o plano é usá-lo para impulsionar a cena criativa com acampamentos de criação coletiva e imersões.

Leia abaixo a entrevista completa com Luana Hansen.

HÍBRIDA: Seu rap era engajado desde o início ou aconteceu com o tempo?

LUANA HANSEN: Olha, no começo o engajamento era ser mulher, negra, empoderada. Era só isso. Em 2001, as mulheres negras não tinham tanto espaço na mídia. Eu queria que elas se sentissem poderosas, bonitas, muito foda. Era essa a ideia do grupo. Mas com o tempo, a coisa ficou mais complexa. Ganhei o Prêmio Hutúz com uma música sobre uma mulher separada que precisa de pensão pro seu filho, mas seu ex-marido é bandido.

Luana Hansen: "É necessário ter uma artista que diga 'eu sou lésbica'" (Foto: Pedro Stephan | Revista Híbrida)
Luana Hansen: “É necessário ter uma artista que diga ‘eu sou lésbica'” (Foto: Pedro Stephan | Revista Híbrida)

H: E como surgiu a questão LGBTI+?

LH: Com o tempo, fui me posicionando dentro do movimento Hip Hop como mulher lésbica, aí é que tive que me emponderar.

H: Isso teve a ver com a descoberta da sua sexualidade?

LH: Não. Eu sou lésbica desde que me entendo por gente. Sempre vivi com mulheres, sempre tive relacionamento com mulheres. Então eu já era lésbica, mas dentro do movimento Hip Hop eu sofri muito logo de cara. Quando o pessoal sabia da minha orientação afetiva, sofria represália. Tinha que me vestir “como mulher”, usar salto, não podia usar boné, não podia usar camiseta. Eu tinha que usar o estereótipo do feminino.

H: E como você reagia?

LH: Isso me deixava muito triste. Lembro que estava em estúdio, ia fazer uma letra de amor e escrevia no feminino. Eles não aceitavam e diziam “assim não, isso tá errado, é pra fazer prum mano”. Eu era obrigada a mudar a letra da música. Eu fui muito perseguida e cheguei a ser banida do movimento hip hop por ser lésbica.

H: O que te ajudou a dar essa volta por cima e se afirmou como mulher lésbica e rapper?

LH: Quando conheci o movimento feminista. Fui expulsa do Rap, estava há quatro anos sem cantar. Então conheci a Elisa Gargiulo, dominatrix, e fiz a música “Ventre livre de fato”, que falava sobre a legalização do aborto. A música explodiu e quando eu vi estava dentro de um movimento que me aceitava do jeito que eu sou e apoiava minhas ideias.

H: Então você voltou a gravar?

LH: Fui montando meu estúdio, porque ninguém queria me gravar. Até hoje, não encontrei estúdios abertos para me gravar, a não ser a Fábrica de Cultura. Hoje, tenho meu próprio estúdio, uma das coisas que me fazem morar no interior.

H: Já gravou artistas LGBT+ no seu estúdio?

LH: Eu lancei a Linn da Quebrada, a Bia Ferreira, e outras. Elas não tinham lugar pra gravar. Foi aí que eu entendi que era importante ser também produtora musical e DJ. Se eu tivesse aceitado o primeiro “não”, nunca teria chegado onde cheguei.

H: Agora você faz letras totalmente engajadas?

LH: Sim, comecei a escrever contra o racismo. Escrevi o hino da Marcha das Mulheres Negras, escrevi uma música sobre a Marielle (Franco). Me tornei uma cronista social, escrevo músicas sobre o que está acontecendo à minha volta. Mas faço isso de uma forma menos dura e mais dançante porque atinge um público maior.

H: E tua militância lésbica, como exerce?

LH: Quando entrei no movimento do Rap, achei que não iria ter espaço para falar sobre isso. Mas quando falamos sobre mulher lésbica, mulher negra, estamos também falando de solidão. E eu passei por tudo isso. Mas encontrei uma pessoa que eu amo e me casei. Era pra eu estar sozinha, mas encontrei uma pessoa que milita comigo, que trabalha comigo: a DJ Mozão. Percebi a importância de falar sobre o tema.

H: Esse tipo de rap lésbico atinge o público? Vocês têm esse retorno?

LH: Toda vez que a gente milita e canta nos lugares, recebemos inúmeras mensagens de meninas novas que não têm amparo. Elas são expulsas de casa, são obrigadas a ir pro colégio interno ou religioso para que saiam de perto das pessoas que elas gostam. Nós recebemos mensagens de muitas garotas que estão numa situação de opressão e se identificam. Então, é necessário ter uma artista que diga “eu sou lésbica”.

H: Acha que sua militância deu frutos?

LH: Eu vejo que meu trabalho atraiu outras meninas da música a se colocar, se posicionar. Eu vejo que, depois de mim, muitas surgiram e tiveram visibilidade. Ser lésbica incomoda numa sociedade machista, capitalista, falocêntrica e heterossexista.

H: Você se casou, constituiu família, tem filhos. Como é essa vida em família?

LH: Eu ganhei a oportunidade de ser mãe aos 35 anos de idade. Ganhei um casal, o Lênin e a Manuela. Eles me motivam a lutar mais a cada dia. E minha esposa Gláucia me ajudou a colocar minhas músicas em todas as plataformas de streaming, coisa que sem ela eu não teria conseguido fazer. Hoje eu tenho 50 músicas na internet em meu nome. Esse é o meu legado pros meus filhos.

H: É difícil criar esses jovens fora do padrão heteronormativo?

LH: Não é fácil. Mesmo a gente criando eles fora da binaridade, tentando criar eles dentro do nosso mundo LGBTI+, a heteronormatividade bate toda hora na porta. Seja na cobrança de o meu filho ser “macho” ou de a minha filha ser “mulher”. É uma cobrança três vezes maior. Eu e minha esposa sendo lésbicas é como se tivéssemos uma fábrica de filhos gays: eles vão ler só os livros gays, usar roupas gays e “virar” gays. Isso é ridículo.

"Quando falamos sobre mulher lésbica, mulher negra, estamos também falando de solidão", diz Luana Hansen (Foto: Pedro Stephan | Revista Híbrida)
“Quando falamos sobre mulher lésbica, mulher negra, estamos também falando de solidão”, diz Luana Hansen (Foto: Pedro Stephan | Revista Híbrida)

H: Seus filhos já sofreram discriminação por serem filhos de lésbicas?

LH: Meu filho sofreu preconceito e já chegou a apanhar na escola. Um menino enforcou meu filho porque ele tinha duas mães. Tive que ir na escola, falar com o menino, com os pais dele. Aí vi que aquilo vinha de casa: religião, culpa e preconceito que o garoto aprendia dos pais.

H: Como é teu relacionamento com a DJ Mozão?

LH: É complexo porque minha esposa é branca. Não tem como não falar isso, porque vivemos no meio da militância e existe o movimento afrocentrado. No começo, quando fiquei com ela, percebi que muitas pessoas deixavam de validar meu trabalho. Deixavam de reconhecer minha luta para dizer “ah, ela é palmiteira”, “ela está com uma branca”. Eu sentia essa cobrança. Só agora, depois de seis anos, as pessoas aceitaram a Glaucia e disseram “ah, ela tá na luta”.

H: E entre vocês, como é a relação?

LH: Ela me dá todo apoio e me incentiva a fazer coisas que nunca pensei em fazer. Agora, está me incentivando a tirar a carteira de motorista, coisa que eu nunca sonhei ter. Algumas vezes, vou fazer uma palestra e estou insegura do que falar, mas ela me dá apoio e me empurra pra frente. Hoje, sou muito mais segura pelo alicerce que ela me dá. É minha melhor amiga.

H: Você tem algum projeto para o futuro?

LH: Tenho. O estúdio que montamos está maravilhoso, nós investimos bastante. Nós vamos lançar umas quatro faixas falando sobre coisas que ninguém fala, como a máfia que é a indústria da música, por exemplo. O disco continua sendo muito politizado e pesado nesse viés. Também estou abrindo espaço para ter novas pessoas trabalhando comigo. Como migrei para o interior, quero usar esse espaço para a vivência artística.

H: Como assim vivência artística?

LH: Levar artistas pra ficarem uns dez dias comigo numa imersão e gravarmos músicas juntos. Sair um pouco de São Paulo. Já recebi um pessoal da Fábrica de Cultura de Guaianazes e vi que dá pra fazer. Quero fazer também com pessoas de outros países com os quais já tenho uma ponte, como a Áustria, Alemanha e Cuba. Já fiz músicas com pessoas desses lugares.


Pedro Stephan é fotógrafo e jornalista, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Trabalhou na imprensa LGBTI+ do Brasil, em veículos como Mix Brasil, G Magazine, G Online e Sui Gêneris Press. Já expôs seu trabalho na Inglaterra, Portugal, Espanha e Itália bem como nos prestigiados salões do eixo São Paulo-Rio.