Liniker, Mel e Diego Moraes se uniram em uma apresentação única durante o 26º Festival Mix Brasil, cmo parte da 1ª edição da Rainbow Cities Tour. Produzida pela Connecting Dots e inspirada pelo trabalho da Rainbow City Network, uma rede internacional com mais de 27 cidades em 15 países comprometidas com a promoção de políticas LGBTQI, a iniciativa busca promover discussões sobre direitos humanos através da música. Momentos antes de subirem ao palco do Centro Cultural de São Paulo, os artistas conversaram com a Híbrida sobre a importância desse projeto no momento de conservadorismo do Brasil e muito mais.

“A representatividade é muito importante, assim como ocuparmos espaços onde temos luz e som, onde a nossa voz reverbera. O palco é um lugar onde a gente tem essa potência”, comenta Mel, reafirmando que a união realizada para o show é uma forma de abraçar os fãs que talvez não tenham uma rede de apoio tão próxima: ” Esse encontro fala muito sobre liberdade e sobre expressão, é algo que precisa acontecer”.

Diego Moraes, Mel e Liniker durante a primeira apresentação da Rainbow Cities Tour, no 26º Festival Mix Brasileiro (Foto: Divulgação)
Diego Moraes, Mel e Liniker durante a primeira apresentação da Rainbow Cities Tour, no 26º Festival Mix Brasileiro (Foto: Divulgação)

Liniker explica que mesmo tendo privilégios por estar sob os holofotes, ainda há questões relacionadas à travestilidade que atravessam as artistas da mesma forma, e que essa união entre elas é uma forma de superar e oferecer um encorajamento mútuo. “Eu fico muito feliz e grata por podermos nos fortalecer e termos uma união que resguarda a nossa sanidade mental. Porque também é difícil estar na linha de frente e militar o tempo inteiro – às vezes a gente está frágil e e só queria poder ser frágil.”

Para Diego, a tensão criada com as eleições 2018 deixou claro a necessidade de potencializar a voz dos movimentos sociais, usando a arte e a música como amplificadoras desses discursos. “Eles, mais do que nunca, querem nos calar. Eu acho que a música é transformadora e a expressão de arte que mais atinge pessoas. Nós, como artistas, temos o dever de falar do que está acontecendo. A nossa responsabilidade diante de um caos tão grande é dar uma resposta.”

Ativismo musical

O show da Rainbow Cities Tour foi guiado por Diego, que recebia as participações ocasionais das amigas em alguns momentos do repertório, composto por covers, músicas do seu último disco e canções do catálogo de Liniker e de Mel. Lançado em 2017, “#Équeeuandodeônibus”  é o segundo álbum do cantor e veio após um longo processo de composição, iniciado quando ele se desligou de sua antiga gravadora.

Vivendo “uma grande fossa da vida”, Diego começou a prestar atenção nas conversas do seu entorno, catalisando os discursos ouvidos em suas viagens de ônibus pelo mundo e transformando os temas em músicas. “A forma como essas músicas nasceram foi muito natural. Abrir o ouvido para o coletivo me fez entender como eu me dou muita importância e como existem tantos problemas de outras pessoas. Então, esse processo criativo foi como uma terapia”, ele explica, acrescentando que levou cinco anos até finalizar o disco.

O tempo foi quase o mesmo que Liniker levou para finalizar “Remonta”, seu aclamado LP de estreia, lançado em 2016 com a banda Liniker e os Caramelows. Hoje, ela está em processo de finalização do seu segundo álbum, com previsão de lançamento para o primeiro semestre do próximo ano. “Toda obra de arte leva tempo e leva a gente, né? Eu sou muito intensa nos meus processos, porque escrever, pra mim, é me fortalecer e poder resistir no papel e na voz. É poder escutar o que eu estou sentindo”, ela conta.

Pela primeira vez, eu me permito não me sentir culpada por me achar maravilhosa

– Liniker

A artista explica que, em “Remonta”, houve um processo de fortalecimento e, simultaneamente, músicas dedicadas a outras pessoas. No próximo trabalho, que já teve os singles “Lava” e “Calmô” divulgados, ela conta que está tomando novos riscos e assumindo uma nova posição no papel de compositora. “É um disco que vem muito num lugar de afirmação de mim. Pela primeira vez, eu me permito não me sentir culpada por me achar maravilhosa, nem por falar o que eu tenho vontade ou questionar quem eu sou. Então, eu estou muito feliz”, comemora.

Também em processo de composição do seu primeiro trabalho como artista solo, depois de anos à frente da Banda Uó, Mel explica que deve lançar ao menos um EP no início de 2019 e que está aproveitando essa nova fase para se amadurecer como artista: “É como a Liniker disse, esse é um processo que leva a gente. E ele está me levando para lugares que eu não pensava antes, porque dentro da Banda Uó tudo foi muito específico, muito direcionado. Nada era de ninguém específico, tudo era dos três. Agora, eu vejo tudo caindo sobre mim e é uma responsabilidade muito grande”.

Enquanto testa sonoridades, aprimora seus talentos e descobre uma identidade própria para se lançar, Mel já divulgou o videoarte para “O Cabelo”, apresentou seu novo single durante o show e adianta para a Híbrida que tem uma parceria gravada com Liniker. “Eu peço paciência para as pessoas, porque o trabalho está ficando muito bonito. Tenho certeza que, depois de eu apresenta-lo, a minha assinatura já vai existir de fato, e isso é algo com o qual eu me preocupo muito. Porque se reinventar depois de se lançar – expecialmente depois de se reinventar de novo, como é o meu caso – é muito difícil”, ela explica.

A primeira geração de artistas trans e sua rede de afeto

É preciso atentar para o fato de que unir três artistas LGBTs no palco da Rainbow Cities Tour, com duas delas sendo transexuais, é algo quase inimaginável para o Brasil de uns cinco anos atrás. O que hoje nos parece natural, demorou décadas para surgir. E, no país que mais assassina a população T em todo o mundo, é louvável que haja artistas como Mel, Liniker, Linn da Quebrada, As Bahias e a Cozinha Mineira, MC Xuxú e tantas outras que estão abrindo o caminho para as gerações futuras.

A própria Liniker comenta com a Híbrida que sua primeira inspiração no cenário nacional foi Mel, que surgiu com a Banda Uó na virada desta década, em uma época quando artistas trans estavam longe de chegarem às rádios e à TV aberta. “Eu nem sabia que era trans, pra vocês terem noção. Eu falo brincando, mas é uma falta de vivência e de compartilhar com pares. Eu não tive isso. Eu realmente vivi violências que a geração seguinte, ou a que veio junto comigo, não teve que enfrentar”, conta.

Mel lembra que, por inicialmente não ter convivido com pessoas trans, ela tentou esconder sua identidade de gênero do mundo: “Hoje, eu me sinto uma pessoa inteira e isso reflete no meu trabalho. Piso no chão e falo que sou uma travesti, me vejo assim. Vejo pares e semelhantes, que estão lutando por uma causa. Quando eu surgi, isso não existia e eu não pensava sobre isso, era uma criança que só queria cantar”, relata, acrescentando que já foi “estuprada midiaticamente muitas vezes”.

Hoje, eu me sinto uma pessoa inteira e isso reflete no meu trabalho. Piso no chão e falo que sou uma travesti

– Mel

Com o tempo, a artista encontrou uma comunidade para acolhê-la e, como ela mesma frisa, é essa rede de apoio que serve de exemplo para outros grupos sociais e políticos: “A gente se fortalece enquanto família. As travestis e muheres trans têm tido um comportamento exemplar. Nós temos nossos problemas, mas niguém vai falar mal de uma mulher trans na minha frente”.

Liniker complementa a declaração de Mel e explica que, por mais que seja difícil para a comunidade trans encontrar um amor no sentido romântico do termo, é possível se apoiar pelo afeto das irmãs: “A gente se fortalecer na música é um puta presente, porque a gente faz pode deixar essa esperança para outras pessoas. Entre nós, existe uma coisa de falar ‘Querida, levanta a cabeça que estamos juntas’. Estamos sozinhas no romance, mas na amizade nunca”.

Ainda em fase de negociações, a Rainbow Cities Tour poderá passar por todas as cidades que fazem parte do projeto, sendo que a única delas na América Latina é São Paulo. Você poderá acompanhar todas as novidades sobre isso na Híbrida e, abaixo, escutar a íntegra da entrevista: