Um grupo de 19 coletivos que atuam em prol da comunidade LGBTQIA+ no Brasil encaminhou um ofício para o ministro Alexandre de Moraes, atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pedindo a proteção de crianças trans nas eleições 2024. O documento propõe uma resolução ou normativa que impeça especificamente “manifestações discriminatórias contra as crianças e adolescentes trans” durante as campanhas municipais.
“Uma forma de violência sofrida tem sido o movimento dos membros do poder legislativo de regressão e redução de direitos desse grupo em situação de vulnerabilidade. Em um primeiro momento, há morosidade e ausência de participação do legislativo brasileiro na elaboração de leis que garantam os direitos dessa população”, diz o relatório.
Baseado em levantamento da organização Minha Criança Trans, o documento aponta a existência de pelo menos 25 projetos de lei de âmbitos federal e estadual com o objetivo de reduzir os direitos das crianças trans e dos adolescentes trans, além da presença expressiva de parlamentares conservadores, como os deputados Eduardo Bolsonaro (PL-RJ), Mário Frias (PL-SP), Gil Diniz (PL-SP) e Messias Donato (Republicanos-ES), que endossam o discurso discriminatório contra a população transgênera.
“Nos últimos tempos, houve recorrentes episódios de ataques de milícias digitais que atuam disseminando fake news sobre a situação das crianças e adolescentes, espalhando mensagens de ódio e de repressão, incluindo o crescente movimento de negação da existência das crianças e adolescentes trans”, afirma o documento, notando um “padrão de utilização” da pauta antitrans na política brasileira.
O relatório foi assinado pelas seguintes organinações:
- Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra)
- Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT)
- Aliança Nacional LGBTI+
- Grupo Dignidade
- Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (FONATRANS)
- Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (ABRAFH)
- Grupo Arco-Íris
- Liga Transmasculina João W. Nery
- Instituto Nacional de Mulheres Redesignadas (INAMUR)
- Mães do Amor
- Famílias da Resistência
- Mães Pela Liberdade
- Núcleo de Transmasculinidades Família Stronger
- Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE)
- Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de Minas Gerais (CELLOS)
- Transtornados Futebol Clube
- SEX-BBOX
- Minha Criança Trans.
Também assinaram os advogados Carlos Nicodemos, Maria Fernanda Fernandes Cunha e Karina Guimarães., além de Thamirys Nunes, responsável pela ONG Minha Criança Trans.
O TSE ainda não se manifestou sobre o pedido de proteção às crianças trans e adolescentes trans contra o discurso de ódio.
Histórico discriminatório contra crianças trans
Um dos projetos de lei sublinhados pelo relatório é o da proposta de alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de autoria do deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil-SP), também pré-candidato à Prefeitura de São Paulo. Seu texto prevê a criminalização de “condutas de pessoas que instigam, incentivam, influenciam ou permitem criança, ou adolescente” a realizar a transição de gênero.
Segundo o documento, “esse projeto não busca apenas retirar direitos das crianças trans e adolescentes trans, visa criminalizar essas crianças e adolescentes, seus familiares e qualquer pessoa que busque prestar o acolhimento, respeitar a dignidade e efetivar a proteção integral devida a este grupo vulnerável”.
Se aprovada, a medida poderia afetar não somente pessoas LGBTQIA+, como também aliados, levando à prisão de pais, professores e profissionais da área de saúde que oferecessem acolhimento às crianças trans.
Outra moção relevante mencionada pela peça é a movimentação de vereadores de São Paulo que querem abrir uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar o acompanhamento de transição de gênero de crianças e adolescentes feito pelo Hospital das Clínicas da USP.
Tal caça às bruxas não é novidade no Brasil. Ainda assim, desde a guinada mundial à extrema direita, observada com afinco na segunda metade da década passada, as propostas e discursos discriminatórios à comunidade LGBTQIA+, em especial à população transgênera, tem aumentado significativamente.
Segundo levantamento feito pela Folha de São Paulo, havia pelo menos 77 projetos de lei antitrans apresentados na esfera estadual e municipal em 18 unidades da federação no ano passado – desses, mais de um terço entrou em vigor ainda em 2023.
Mesmo com a presença ativa de parlamentares como as deputadas federais Duda Salabert (PDT-MG) e Erika Hilton (PSOL-SP) no cenário político brasileiro, as ações e discursos transfóbicos persistem, sendo endossados muitas vezes com ajuda das redes sociais.
Basta lembrar do lamentável episódio ocorrido há pouco mais de um ano, quando o deputado Nikolas Ferreira (PL/MG), munido de uma peruca loura no Dia Internacional da Mulher, alegou se identificar como “Nikole”, destilando mais uma vez sua intolerância. “As mulheres estão perdendo seu espaço para homens que se sentem mulheres. Para vocês terem ideia do perigo que é isso, eles estão querendo colocar a imposição de uma realidade que não é a realidade”, disse.
A existência de pesquisas científicas que comprovam a segurança no uso de bloqueadores da puberdade e tratamentos hormonais em pessoas mais jovens também segue sendo desconsiderada pela ala mais à direita da política brasileira, que insiste no argumento falacioso de que barrar direitos à população transgênera significa “proteger as crianças”.
“Projetos assim promovem a transfobia, a ignorância e a violência direta, física e estrutural contra pessoas trans.
Eles institucionalizam o sofrimento que a puberdade causa e seus efeitos altamente danosos da disforia de corpo, com impactos diretos na saúde física e mental de pessoas trans que ficam sem perspectivas de cuidado e pensam que suas existências não são válidas”, reflete a ativista Bruna Benevides sobre o impacto dessas políticas sobre a saúde de crianças trans e adolescentes trans.
Transfobia política além do Brasil
Os Estados Unidos também têm servido como palco fértil para o crescimento de discursos e pautas LGBTfóbicas, incluindo a proibição de mulheres e meninas trans em esportes femininos, a caçada contra shows de drag queens em locais públicos do país, a redução de assistência médica a crianças trans e adolescentes trans, dentre outros. Para piorar, o prognóstico não parece tão positivo com a possibilidade da vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais de 2024.
“Nós podemos esperar que, se Trump for reeleito, suas nomeações para o judiciário serão ainda mais ideologicamente extremistas do que foram no seu primeiro mandato, e seriam pessoas muito mais alinhadas a uma agenda trumpista”, afirmou Michael Boucai, docente na Universidade de Buffalo, em entrevista exclusiva à Híbrida.
Segundo o professor, “dada a natureza das pessoas que Trump prometeu nomear para posições no governo federal, incluindo o judiciário, nós podemos esperar pessoas que serão muito mais agressivas no sentido de mirar em uma agenda conservadora, incluindo direitos LGBTQIA+”.