O fim de semana foi de tensão e resistência no Rio de Janeiro, enquanto o bispo Marcelo Crivella (PSB) tentava de todas as formas impor sua censura ao conteúdo LGBTQ da XIX Bienal Internacional do Livro. Na sexta-feira (5) à tarde, ele anunciou em suas redes sociais que tinha ordenado o recolhimento da HQ “Vingadores – A cruzada das crianças”sob a desculpa que precisava proteger crianças e adolescentes de um beijo gay. A partir daí, começou um dos episódios mais vergonhosos nos quase quatro anos de sua gestão.

No mesmo dia, o Sindicato dos Editores de Livros conseguiu uma liminar no Tribunal de Justiça que impediu a Prefeitura de recolher o título da Marvel, já que a decisão do prefeito “reflete ofensa à liberdade de expressão constitucionalmente assegurada”. Ao mesmo tempo, a organização da Bienal emitiu nota afirmando que não recolheria os quadrinhos, que se esgotaram em menos de 40 minutos na manhã do sábado.

Felipe Neto, um dos maiores influenciadores do país, anunciou a compra de 14 mil títulos com temática LGBTQ para serem distribuídos gratuitamente no evento. Enquanto isso, guardas municipais chegavam armados ao evento, que estava repleto de crianças, para supostamente proteger as mesmas desse tal conteúdo impróprio. À tarde, mais um capítulo da novela: o desembargador Cláudio de Mello Tavares derrubou a liminar do dia anterior e concedeu à Prefeitura permissão para a censura de qualquer livro com conteúdo sobre diversidade de gênero e orientação sexual, sob a mesma desculpa de Crivella.

Ao conceder sua liminar, Tavares alegou que temas sobre “homossexualidade” atentam contra o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e devem ser comercializados em embalagem lacrada, com advertências sobre o conteúdo. A Bienal levou o caso ao Supremo Tribunal Federal e, com apoio da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, conseguiu a permissão para distribuir o título.
Livros de temática LGBTQ distribuídos por Felipe Neto vieram em embalagem lacrada e com aviso personalizado (Foto: Reprodução | Twitter)
Livros de temática LGBTQ distribuídos por Felipe Neto vieram em embalagem lacrada e com aviso personalizado (Foto: Reprodução | Twitter)

Mais ainda: em sua decisão, Dias Toffoli, presidente do STF, relembrou não só o direito à liberdade de expressão previsto na Constituição brasileira, mas também que aquele mesmo tribunal já aprovou há oito anos a união civil entre pessoas do mesmo gênero. A decisão ainda foi apoiada pelos ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello, que categorizou a tentativa de censura como “fato gravíssimo” e afirmou: “Mentes retrógradas e cultoras do obscurantismo e apologistas de uma sociedade distópica erigem-se, por ilegítima autoproclamação, à inaceitável condição de sumos sacerdotes da ética e dos padrões morais e culturais que pretendem impor, com o apoio de seus acólitos, aos cidadãos da república”.

A Prefeitura emitiu comunicado alegando que iria recorrer da decisão e, nesse meio tempo, o desembargador Cláudio de Mello Tavares, que havia concedido a permissão para o recolhimento dos livros, afirmou que não havia praticado “censura”. Este é o mesmo juiz que, há uma década, teve a pachorra de emitir decisão judicial afirmando que héteros, “com base na fé’, têm o direito de defender que “a homossexualidade é um desvio de comportamento, devendo ser reprimida, não divulgada ou apoiada pela sociedade, dentre outros absurdos ao longo dos últimos anos.

As estatísticas referentes a LGBTS no Brasil já causam estrago suficiente com base na repressão, excelentíssimo. A expectativa de vida para uma travesti nesse país é de 35 anos, somos os campeões mundiais em assassinatos dessa população e os estupros corretivos ainda atingiam 6 mulheres lésbicas por dia em 2017. A repressão já está instaurada e é vergonhoso que, no exercício de sua função pública, um suposto defensor da Justiça e o líder de uma das maiores cidades do país à incentive.

Mas enquanto o episódio de Crivella na Bienal parece ter sido superado, pelo menos por ora, já que o evento chegou ao fim na noite deste domingo, esse está longe de ser o único caso em que a censura foi imposta a LGBTs sob a desculpa de proteção das crianças.

Na semana passada, João Doria (PSDB) resolveu usar tempo e verba pública para recolher livros do 8º ano de São Paulo que continham incentivo à suposta “ideologia de gênero”. Isso porque já foi provado que o próprio termo “ideologia de gênero”, por definição, não existe; e porque o material simplesmente ensinava sobre diversidade, em um país que insiste em preferir adolescentes se suicidando ou evadindo do ambiente escolar do que tendo suas escolhas respeitadas em um ambiente público. Pior ainda do que censurar livros na Bienal é censurá-los em uma escola pública.

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João Doria mandou recolher todos os livros de ciências do 8º ano do ensino fundamental da rede estadual de São Paulo, alegando que o material faria uma alegada "apologia" à chamada #IdeologiadeGenero. Em suas redes sociais, o governador do PSDB afirmou que "não concorda" e "não aceita" o debate sobre o tema na educação. A atitude recebeu o apoio de Damares Alves, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. No Twitter, ela afirmou que a suposta ideologia de gênero "oferece risco às crianças". . . Vale lembrar que Doria tem ensaiado seu afastamento de Jair Bolsonaro nas últimas semanas, mirando as eleições presidenciais de 2022 e o eleitorado ultraconservador do presidente. #Educação #DireitosLGBTQ #LGBTQ #GovernodeSP

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Surfando na onda bolsonarista, tanto Crivella quanto Doria protagonizaram episódios inimagináveis em qualquer país que respeite o direito não só à liberdade de expressão, como a nossa Constituição prevê. Mais ainda, desrespeitaram a decisão do STF de que a discriminação baseada em orientação sexual e diversidade de gênero é um crime, tudo por uma manobra política que visa a conquista de uma parcela conservadora da população nos próximos anos eleitorais.

De acordo com o jornal O Dia, Crivella, que deveria ter sentido vergonha da ridicularização à qual se expôs tanto perante a Justiça brasileira quanto frente à mídia internacional, comemorou a repercussão de sua censura. Doria, que já tem se estranhado publicamente com Bolsonaro nas últimas semanas, também sai dessa considerando-se vencedor por ter aderido a um dos traços mais fortes do bolsonarismo: a intolerância à chamada “ideologia de gênero”.

Esse foi um dos pilares da campanha de Jair Bolsonaro: apelar para a sua suposta condição de “sacerdote da ética e dos padrões morais e culturais”, como bem disse o ministro Celso de Mello, e condenar tudo o que foge a essa regra, mesmo que para isso precise usar fake news. A conexão é tão clara que inclusive foi o método usada pela Prefeitura do Rio para recorrer ao STF, usando imagens de um livro comercializado em Portugal para atacar a Bienal.

Beijo gay censurado por Crivella na Bienal não pode ser considerado impróprio, já que não contém ilustrações de nudez nem relações sexuais (Foto: Reprodução)
Beijo gay censurado por Crivella na Bienal não pode ser considerado impróprio, já que não contém ilustrações de nudez nem relações sexuais (Foto: Reprodução)

É preciso chamar as coisas pelo que elas são e a ordem de Crivella em censurar um beijo gay é simples e claramente um ato de homofobia institucionalizada. Se a história de “Vingadores – A cruzada das crianças” não traz uma única imagem de nudez ou relação sexual que se enquadre na definição de “conteúdo impróprio” previsto pelo ECA, a decisão do bispo de atacar a obra é puramente um ato de discriminação, como o próprio STF já entendeu.

Os quatro anos de governo Bolsonaro já estão sendo muito caros ao Brasil. Já nos tornamos dormentes às suas práticas de nepotismo, degradação ambiental, obstrução de justiça e a negação de fatos, abrindo espaço para o entendimento de mentiras como verdade. Também já assistimos inertes às suas decisões de vetar verba pública a projetos LGBTQ, censurando há apenas 15 dias o patrocínio de séries com essa temática sem sofrer qualquer consequência até aqui, mesmo enquanto é investigado pelo Ministério Público Federal sobre o mesmo episódio.

É apenas a partir do espelhamento de tal impunidade contra o presidente que tanto Crivella quanto Doria se sentem no direito de usar temas e conteúdos LGBTQs como artifício para conquistar o conservadorismo do eleitorado bolsonarista. Com as eleições municipais e presidenciais no horizonte, o discurso retrógrado se tornou um trunfo na manga de qualquer político que mire a direita e queira ganhar votos à base do populismo retrógrado.

Se o Supremo consegue entender que 1) discriminar contra identidade de gênero e orientação sexual é crime equivalente ao racismo; 2) a democracia pressupõe um ambiente no qual todos tenham direito a voz; e 3) taxar “temáticas homossexuais” como “conteúdos impróprios” ou “nocivos à crianças e adolescentes” é atribuir desvalor às imagens desses mesmos personagens, então o que está faltando para que dê-se um basta na verborragia preconceituosa do presidente da República?

Suas declarações contra a população LGBT, do alto do maior cargo desse país, não têm sido poucas, e muito menos levianas. Mais do que isso, elas têm começado a incitar uma série de medidas e proibições que, assim como a tentativa frustrada de Crivella, configuram episódios claros de censura á diversidade, beneficiando apenas a si próprio e a parte mais conservadora de seu eleitorado – o que não deveria caber em uma democracia de verdade.