“A gente não tem muito que se espantar com a omissão legislativa. Esse Congresso não tem legislação sobre nós, ele evita falar sobre nós e, quando fala, é por uma tentativa nítida de promover a retirada dos nossos direitos. Não há nada de novo no front”, diz Symmy Larrat, secretária nacional de Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+.

Na mesma terça-feira em que a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF) da Câmara dos Deputados tentava votar um projeto de lei que proíbe o casamento homoafetivo e que o presidente Lula prometeu às Nações Unidas que seu governo será “rigoroso” na defesa dos nossos direitos, Symmy acompanhava Roberta Clarke, relatora dos Direitos das Pessoas LGBTI da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), durante sua visita ao Brasil.

Roberta veio ao país a convite do Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade). A viagem, que inicialmente era apenas informal, foi organizada para que a comissária da Organização dos Estados Americanos (OEA) encontrasse organizações da sociedade civil e ativistas em Brasília, Fortaleza e no Rio de Janeiro, onde promoveu debates, workshops e conheceu ações de enfrentamento à LGBTfobia. Mas, a pedido de Symmy e do governo federal, a visita foi feita como parte de uma agenda oficial da CIDH, que agora deve produzir um relatório sobre tudo o que viu por aqui em relação aos direitos da comunidade LGBTQIA+.

“Isso dá uma importância a mais”, aponta Symmy, frisando a mudança de postura que o governo federal tem promovido em relação à administração anterior no que diz respeito à diplomacia com órgãos internacionais focados nos direitos humanos e, especialmente, de pessoas LGBTQIA+. “Queremos entender como fortalecer a pauta em toda a América Latina, porque esse movimento contrário de ‘ideologia de gênero’ atinge a região como um todo.”

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Que Roberta tenha vindo em uma das semanas mais turbulentas e caóticas que o país enfrentou este ano na luta pelos mesmos direitos, ações e políticas públicas que a relatora deve investigar foi uma mera coincidência. Symmy, inclusive, diz que não se preocupa de o episódio na Câmara dos Deputados, que terminou com um ato de transfobia contra a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), manchar a imagem de reconstrução que o Brasil tenta vender lá fora.

“Quando dizemos que o Brasil quer fazer algo, não estamos mentindo. Nós queremos e vamos fazer, independente daqueles que se desresponsabilizam sobre isso. Se o Legislativo, como parte do Estado, se desresponsabiliza sobre isso, não podemos ficar omissos”, afirma Symmy.

Na última quinta (21), ela e Roberta participaram de um evento promovido pela Raça e Igualdade para debater o caráter interseccional da luta por direitos LGBTQIA+. O debate contou com as participações de Bruna Benevides, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra); Monica Seixas, da Articulação Brasileira de Lésbicas; e Omari Scarambone, do Fórum TT-RJ.

Antes, Symmy falou com a Híbrida sobre o impacto que as políticas LGBTQIA+ tiveram com a reforma ministerial e a entrada dos partidos de Centro no governo federal, a tentativa da Bancada Evangélica de proibir o casamento homoafetivo e por que os ataques de Nikolas Ferreira (PL-MG) e do pastor André Valadão contra a comunidade não podem ficar impunes: “Um crime foi cometido e não vamos esquecer esse fato. Eles podem ter esquecido, mas nós não”.

Symmy Larrat, secretária nacional de Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+: "Temos muita coisa para reconstruir, mas agora já sabemos como vamos fazer" (Foto: Clarice Castro |MDHC)
Symmy Larrat, secretária nacional de Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+: “Temos muita coisa para reconstruir, mas agora já sabemos como vamos fazer” (Foto: Clarice Castro |MDHC)

HÍBRIDA: Como tem sido o diálogo com a Roberta Clarke e o que ela tem buscado saber sobre o Brasil até agora?

SYMMY LARRAT: Como integrantes da OEA, achamos muito importante essa visita da relatora e essa análise, porque ela ajuda o país a se conectar com determinados temas que são muito interseccionais, como a própria pauta LGBTQIA+. A Secretaria não consegue dar conta de toda essa interseccionalidade que a pauta demanda. E também porque fortalece a integração dos estados das Américas.

A Roberta já viria ao Brasil para se conectar aos movimentos sociais, mas a visita não era oficial. Quando o governo daquele país sinaliza o aceite daquela visita, ela se torna oficial. Quando estive em Washington, sinalizamos que seria muito importante a visita dela para o Brasil e gostaríamos de recebê-la. Isso mostra uma mudança de posição do governo brasileiro e dá uma importância a mais.

Tenho acompanhado todas as agendas dela no que concerne às relações governamentais, uma vez que com os movimentos sociais não é prudente, porque eles precisam estar à vontade para fazer os apontamentos que precisam ser feitos, com a abrangência de todas as pautas. É importante que a gente permita esse olhar dela com muita independência.

Soubemos de algumas localidades que é importante visitarmos aqui nas Américas para fazermos trocas importantes e vermos experiências exitosas. Queremos entender como fortalecer a pauta LGBTQIA+ em toda a América Latina, porque esse movimento contrário de “ideologia de gênero” atinge a região como um todo.

H: O evento que você e Roberta participaram tem como tema essa mesma perspectiva interseccional sobre direitos de pessoas LGBTQIA+ e que é uma das atribuições da Secretaria desenvolver com outras pastas. Como tem sido o diálogo com os outros ministérios? Há algum empecilho agora por causa da reforma ministerial e essa entrada maior dos partidos de Centro no governo?

SL: O governo já era de coalizão ampla desde o começo. A gente sabia que teria que conversar com todos os lados, até quem não é governo. Mas o que concerne ao governo, acho que o presidente deixou uma mensagem muito nítida (na Assembleia Geral da ONU), de que seremos intransigentes na defesa dos direitos de pessoas LGBTQIA+.

Essa mensagem, logo após uma pequena reforma ministerial, sinaliza isso. Não podemos nos amarrar por causa da reforma. Obviamente, ela tem algum impacto. Alguns diálogos que já tinham começado têm que ser retomados. Mas o que eu percebo, desde o começo, é que todo mundo estava “arrumando a casa” e algumas respostas as pessoas não sabiam como nos dar. Não enfrentamos a negativa, apenas um “precisamos entender o que vocês querem”. O governo é muito grande, tem muita pauta. Se pararmos pra pensar, estamos envolvidos em muitas áreas, de ciências e tecnologia à educação.

H: A Secretaria emitiu duas notas técnicas este ano sobre os casos do pastor André Valadão e do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), que promoveram ataques violentos, ainda que só verbais, contra a comunidade LGBTQIA+. Meses depois, nada aconteceu. Por que acha que esses episódios têm passado impunes? É possível mudar isso?

SL: A gente não tem muito que se espantar com a omissão legislativa. Ela nos acompanha desde sempre. Esse Congresso não tem legislação sobre nós, ele evita falar sobre nós e, quando fala, é por uma tentativa nítida de promover a retirada dos nossos direitos. Não há nada de novo no front.

Agora, como pressionamos, enquanto sociedade e governo, para fortalecer o sistema de Justiça e Segurança como um todo, para entender de forma normativa que a LGBTQfobia é crime? Estamos em intenso diálogo com o Ministério da Justiça, com as universidades e institutos de pesquisa, em um processo de estudos para elaboração de normativas na Segurança Pública e na Justiça.

Se o Legislativo, como parte do Estado, se desresponsabiliza sobre isso, não podemos ficar omissos e deixar de fazer

Isso foi a mesma coisa que aconteceu com a Lei Maria da Penha. Tivemos uma Legislação, mas a cada ano vamos melhorando com os regramentos, protocolos de investigação, de trâmite judiciário… Queremos entregar esse pacote durante a gestão, para ajudarmos os sistemas a promoverem esses trâmites necessários.

Nosso sistema de Justiça não pode continuar olhando para isso sem intervir no processo. Um crime foi cometido e não vamos esquecer esse fato. Vamos usar esse exemplo para todos os diálogos que fizermos, seja com o Conselho Nacional de Justiça, com o Ministério Público… Em todas as nossas andanças, vamos usar a nossa ausência de resposta estatal. Eles podem ter esquecido, mas nós não.

H: Falando em Legislativo, no mesmo dia em que o presidente Lula prometeu defender os direitos de pessoas LGBTQIA+ na Assembleia Geral da ONU, tentaram votar o projeto de lei que proíbe o casamento homoafetivo. Não acha que isso, com mais um episódio de transfobia dentro da Câmara, acaba ferindo a imagem de reconstrução dos direitos humanos, em especial LGBTQIA+, que o governo tem tentado passar?

SL: Essa é uma realidade que a gente nunca viveu. Quando dizemos que o Brasil quer fazer algo, não estamos mentindo. Nós queremos e vamos fazer, independente daqueles que se desresponsabilizam sobre isso. Se o Legislativo, como parte do Estado, se desresponsabiliza sobre isso, não podemos ficar omissos e deixar de fazer.

Então é um caminho de muito tempo e uma realidade de muitos países pró-LGBTQIA+, inclusive na Europa. O Legislativo internacional nunca foi um lugar de intensa receptividade. Agora, precisamos ter uma estratégia unificada. Porque às vezes damos todos os elementos midiáticos para eles promoverem o ódio. O movimento do ódio é rentável e se alimenta desses impactos midiáticos. Precisamos esvaziar a estratégia deles.

No caso desse projeto (contra o casamento homoafetivo), a inconstitucionalidade é muito nítida. Não sei se seria uma derrota aprová-lo nessa Comissão, talvez seria algo para “tirar as máscaras” e mostrar quem está contra nós. Porque esse PL não chega ao Plenário. Eu tenho convicção. Ainda passa por (Comissão de) Direitos Humanos e CCJ. É de uma ousadia muito grande. Precisamos constituir uma nova estratégia para não dar o palco midiático que eles querem.

H: Em última instância, se esse projeto de lei chegasse na mesa do presidente Lula para veto ou sanção. Vocês chegaram a conversar sobre o que ele faria nesse caso?

SL: Não converso com o Lula com a frequência que eu gostaria. Inclusive adoraria despachar com o Lula semanalmente. Mas ele já se posicionou em sua trajetória sobre isso, inclusive nas eleições. Isso é algo sanado entre nós. Outros projetos teríamos que conversar com o Lula, se passassem pelas comissões e fossem votados. Esse, em específico, não. O que o STF já julgou tenho certeza que o Executivo não vai recuar. Posso falar com muita firmeza. Coloco minha mão no fogo. Lula tem muito respeito pelo STF e pelas instituições democráticas. Senão, eu pegava minhas trouxinhas e voltava para casa.

H: Como você avalia o avanço de políticas e direitos LGBTQIA+ nesses quase dez meses de governo Lula?

SL: Primeiro, a gente conseguiu agora ser uma Secretaria Nacional. Já sabemos como será o orçamento, temos uma estrutura mínima para trabalhar e dar conta da tarefa. Depois de dez meses, posso dizer que sou secretária nacional com a boca cheia. Temos muita coisa para reconstruir, mas agora já sabemos como vamos fazer, o que fazer e estou com muito mais esperança do que eu tinha há dez meses.

Diferente de outras áreas, que por mais que estivessem esvaziadas, constituíam uma política, para nós é um pouco mais difícil. Queremos começar o ano que vem fazendo muitas entregas. Fizemos muitas escutas, mas vamos promover as ações necessárias. Com os recursos que tínhamos, optamos esse ano por apoiar a sociedade civil. Mas a partir do próximo ano, queremos fazer o fortalecimento institucional das estruturas de gestão LGBTQIA+ por esse país,o que é inclusive uma orientação do ministro Sílvio de Almeida, para atuarmos na ponta. Estou muito cheia de esperança, feliz com o que estamos planejando e doida para ver isso sendo executado.