*Com João Ker

A situação política no Brasil é caótica – e parece que não vai melhorar tão breve. Em outubro de 2018, Jair Bolsonaro foi eleito presidente do maior país da América do Sul. Já nos 30 anos anteriores de sua carreira política, ele expressou ideais homofóbicos, misóginos e racistas, além de glorificar a Ditadura Militar, um dos capítulos mais sombrios da história recente do país.

A eleição de Bolsonaro leva o Brasil a um clima em que mulheres, LGBTs, negros, indígenas e qualquer minoria têm seus destinos incertos com as ameaças de seu governo. No entanto, a mudança para a direita também atinge os produtores culturais.

Já durante sua campanha, Bolsonaro atacou a cultura com notícias falsas (as famosas fake news) e um discurso moralista de motivação religiosa. Um de seus slogans mais repetidos foi o de que “Artistas mamam nas tetas do governo”, referindo-se aos criadores de cultura como parasitas que se aproveitaram dos recursos para fabricar seu lixo.

Ao mesmo tempo, a resistência ao ataque de Bolsonaro foi formada. Mais de 300 pessoas, incluindo alguns dos mais conhecidos músicos do país, como Gilberto Gil e Caetano Veloso, assinaram durante as eleições um manifesto contra Bolsonaro e pela liberdade das artes. E, assim como nos idos da Ditadura Militar, os músicos brasileiros estão reagindo à repressão e à reação adversa.

A cultura pop, como em outros tempos difíceis da história brasileira, serve não apenas como uma rota de fuga para as tensões do povo, mas também como uma arma para se defender contra a reação adversa. O tiro de Bolsonaro saiu pela culatra: ao tentar diminuir o alcance e a relevância dos artistas brasileiros, o grupo respondeu com um comprometimento político e combativo em seus respectivos trabalhos.

Músicas de protestos, ontem e hoje

Política e cultura estão intimamente relacionados no Brasil. Entre 1964 e 85, na Ditadura Militar, a música popular brasileira (ou ao menos uma versão dela) teve uma de suas fases mais produtivas com as chamadas “canções de protesto”. Artistas como Caetano, Gil, Chico Buarque, Elis Regina e Gal Costa condenaram a crueldade institucional em canções que ainda mantêm um papel importante na cultura, por sua excelência lírica e sua coragem.

Monitorados por censores, que tinham de aprovar tudo publicado ou transmitivo na TV e na rádio, o compositor tinha que encontrar trocadilhos, siglas ou metáforas que protestassem nas entrelinhas das canções, desenvolvendo duplos sentidos. Como resultado, surgiram canções que, no clima racista, LBTfóbico e sexista atual, encontram uma nova vida.

Embora a censura oficialmente não exista no Brasil, a moral cristã pregada por Bolsonaro e seu governo floresce em todo o país. E, como décadas atrás, os artistas brasileiros encontraram sua maneira de defenderem-se através da arte e da cultura, conscientizando seus diferentes nichos.

Entre as primeiras canções políticas desta nova era está “Flutua”, parceria entre Johnny Hooker e Liniker. Nascido em Pernambuco, Hooker é um homem gay que se apresenta com roupas andróginas e maquiagem. Em seus espetáculos pelo país, ele tem levantado gritos e protestos contra o governo de Michel Temer e, mais tarde, o de Bolsonaro. Liniker, por sua vez, é uma mulher negra, transexual e com uma das maiores vozes da nova geração.

Na música, a dupla canta sobre a liberdade de amar quem eles querem sem ter que se esconder ou temer nada. O vídeo que acompanha mostra um casal gay que é homofóbico em São Paulo. Foi visto mais de quatro milhões de vezes. Em uma apresentação no “Rock in Rio”, o maior festival de música do Brasil, Liniker e Hooker se beijaram no palco enquanto o ditado “Amor sem medo” aparece em uma tela. Uma mensagem de orgulho e, ao mesmo tempo, um protesto contra a homofobia e a hostilidade.

De muitas maneiras, “Flutua” representa o que a cena LGBT e pop brasileira está produzindo agora. Embora ainda haja espaço para músicas que abordam amor, corações partidos e o desejo de celebrar, a política se torna mais importante a cada dia. O desprezo por corpos e identidades queer, que a sociedade e a política internalizaram durante séculos, produzem novas e diversas narrativas em um panorama que raramente lhes oferece espaço.

Aqui, é importante considerarmos a democracia cultural oferecida pela Internet. Quem já teve que consumir o que os gatekeepers de jornais, revistas, rádios e emissoras de TV pregaram como excelentes, pode hoje, com apenas um clique, encontrar o que está procurando. E isso oferece aos artistas indepedentes uma maneira de se tornarem conhecidos pelas redes sociais, e não por uma grande gravadora.

A explosão que essas novas narrativas têm criado na cena brasileira é de uma transversalidade tamanha que abrange tanto a diversidade de gêneros identitários, quanto a de gêneros musicais e culturais. Um dos melhores exemplos é o rap brasileiro, dominado há até alguns anos por homens cis. Hoje, a amplitude de vozes femininas no meio, algumas vindas das rodas de slam por São Paulo ou pelo Rio, trouxe discursos feministas que o público de hip hop não estava acostumado a ouvir ou, muitas vezes, sequer saber da existência.

Uma das muitas protagonistas dessa nova era é Linn da Quebrada. A rapper negra e transexual da periferia de São Paulo lançou seu primeiro álbum, “Pajubá”, em 2017. No disco, ela mistura influências musicais do rap, do funk e do samba. Nas letras, ela aborda experiências sexuais, afetivas, sociais e identitárias de pessoas trans, criando assim uma ode a histórias que mal foram ouvidas até hoje.

Mesmo na próprio rádio, há uma presença queer. Originário do Rio de Janeiro, o funk é conhecido fora do país como Baile Funk ou Funk Carioca. Seu caminho para o norte global foi preparado por Diplo, quando este incorporou o som de Deize Tigrona em suas produções com M.I.A. Na Alemanha, Daniel Haaksmann é um dos DJs mais conhecidos do gênero e, embora sejam principalmente homens brancos os responsáveis ​​pela popularidade do rádio fora do Brasil, o gênero é originalmente preto e periférico. E ele também é cada vez mais usado por pessoas queer.

O funk tornou-se uma das pontes mais importantes entre drag queens e o mercado da música. Foi através dele que Pabllo Vittar conseguiu um dos primeiros e maiores hits de sua carreira com “Todo Dia”, parceria com Rico Dalasam (o primeiro rapper assumidamente gay do país) que foi eleita a maior música do carnaval de 2017.

Hoje, é possível ouvir uma enorme variedade de drag queens e artistas trans com propostas estéticas e acústicas que, mesmo extrapolando o funk, não deixam de inclui-lo como uma forma de se conectar com o público geral brasileiro. Nomes como Gloria Groove, Pepita, Aretuza Lovi e Lia Clark dominam pistas de daças, canais de TV e até se consagram no carnaval, espalhando de forma natural um novo debate sobre gênero e identidades sexuais.

Falando em Carnaval, ele não deve ser entendido apenas como termômetro de popularidade, mas também como instrumento democrático e cultural de protesto. Pegue, por exemplo, Daniela Mercury. Uma das divas mais conhecidas da axé music, ela criticou o governo Bolsonaro com uma música que não só põe o público para dançar, mas ataca diretamente os discursos e medidas da “nova era”.

Lésbica e embaixadora da UNICEF desde 1995, Daniela juntou-se a Caetano Veloso para “Proibido o Carnaval”. Nela, a dupla canta versos como “Abra a porta desse armário, que não tem censura pra me segurar”. Há também a clara alusão ao “rosa ou azul?”, referência à declaração da pastora e Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.

As escolas de samba, por sua vez, provaram novamente que a cultura brasileira não vai abaixar a cabeça contra essa regressão ideológica e social. Em 2018, a G. R. E. S. Paraíso do Tuiuti foi coroada com um desfile que protestou contra o governo interino de Temer.

Este ano, foi a vez da G.R.E. S. Estação Primeira de Mangueira, uma das escolas mais antigas e prestigiadas do carnaval, que fez um desfile de personagens pretos e indígenas da verdadeira história do Brasil. A escola ainda trazia a cabeleireira transexual Patricia de Souza, capa da nossa edição especial, como uma de suas musas.

Pela primeira vez, uma pessoa trans ocupou essa posição nos 80 anos de história da escola. Além disso, houve a homenagem dupla feita a Marielle Franco, a socióloga, vereadora e mulher bissexual que defendeu os direitos humanos e foi morta há um ano, em um dos piores e mais bárbaros crimes políticos em nossa história.

Além de aparecer no samba-enredo (“Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”), a esposa de Marielle, Monica Benício, também foi convidada a participar do desfile da Mangueira. Como resultado, a escola levou para casa o troféu de campeã carioca do carnaval, enquanto o carnavalesco Leandro Vieira declarou que o desfile era SIM um recado ao Presidente.

Essa não foi a única ocasião em que Bolsonaro recebeu o deboche do público brasileiro durante o caraval. No norte e nordeste do país, os bonecos do Presidente eram insultados, apedrejados e hostilizados quando passavam pelas ruas. Marchinhas como “Dr., eu não me engano / O Bolsonaro é milicano” se popularizaram, aparecendo na folia assim como os gritos de “Marielle, presente!”.

Há um entendimento no Brasil: os presidentes vêm e vão, mas a cultura brasileira permanece para sempre. Sob Bolsonaro, pessoas LGBT e produtores culturais estão sendo atacados e ameaçados mais do que nunca, mas sua resistência permanece intacta.

Este texto faz parte de uma parceria entre a Revista Híbrida e a SPEX. A SPEX tem sido a a principal fonte para jornalismo de ponta sobre cultura pop na Alemanha, desde 1980. Ela contextualiza música, literatura, cinema, artes e tudo nesse meio, com uma visão crítica sobre acontecimentos políticos e sociais.