*Colaborou João Ker

Após décadas de luta, a população transgênero conquistou o direito de ter seu nome social reconhecido pelo Judiciário na última quinta-feira (1º). Em uma decisão histórica, publicada hoje pelo Diário Oficial da União, o Supremo Tribunal Federal declarou que pessoas trans agora podem alterar nome e gênero no registro de nascimento, sem a necessidade de cirurgia ou intervenção judicial.

Para fazer a mudança  no registro, é preciso simplesmente ir ao cartório e solicitar a alteração. De acordo com a decisão do STF, o cartório não expediria uma nova certidão de nascimento para transexuais, mas mudaria os dados no documento já existente. A regra deverá ser atestada somente por autodeclaração e vale para transexuais de todo o país.

“A vitória que tivemos é muito representativa e simbólica. Ela marca, principalmente, o reconhecimento da identidade de gênero de travestis, mulheres e homens transexuais e demais pessoas trans que cotidianamente têm sua identidade deslegitimada por uma sociedade que não quer discutir esse assunto”, comenta Bruna Benevides, presidente do Conselho LGBT de Niterói e diretora de articulação política do Associação Nacional de Travestis e Transexuais – Antra.

 

Em parceria com a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), a Antra também comemorou a decisão do STF em nota pública: “[É uma] conquista importante, que nasce da demanda dos movimentos sociais, na luta pelo reconhecimento de nossas identidades, do resgate da cidadania plena e autonomia de nossa população. […] É muito importante este momento, em que conseguimos vitória frente ao fascismo e a transfobia que está enraizada em nossa sociedade”.

Ligia Fabris Campos, professora da Escola de Direito da FGV, concorda e comenta que nesse tipo de decisão o Supremo raramente tem a chance de ouvir a voz e a história de quem está julgando, mas neste caso isso aconteceu. “Durante o julgamento, os ministros destacaram a participação dos grupos políticos e organizações da sociedade civil envolvidos na questão, que estão interessadas e são atingidas diretamente pela decisão, além da relevância da opinião consultiva expedida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em novembro de 2017, que segue a mesma linha da decisão.”

Benevides conta que teve seus documentos retificados após três anos em uma fila de espera para conseguir acesso a esse direito através de uma decisão judicial favorável, sendo necessário apresentar laudos psicológicos e psiquiátricos: “Eu precisei desses laudos médicos para atestar que eu existia de fato para a sociedade.Parecia que eu só existia a partir desses documentos. Por isso, é importante a desburocratização de um processo que antes era muito humilhante para pessoas trans e que nos colocava em situações vexatórias e constrangedoras, em que precisávamos da legitimação de terceiros sobre as nossas vidas”, desabafa.

Em comemoração à decisão do STF, Bruna e outras ativistas trans, como Keila Simpson, do fez uma fogueira simbólica na qual queimaram os laudos psiquiátricos para manifestarem a liberdade de não dependerem mais da avaliação médica para terem acesso a retificação “Essa é a chancela que nos liberta de uma medicina e psicologia que nos aprisionava a partir de um olhar patologizante, binário e puramente biológico, que limitava quem éramos a questões físicas”, comenta Benevides.

E COMO FICA O LEGISLATIVO?

Essa não é a primeira vez que o Supremo Tribunal Federal fica à frente do Congresso Brasileiro na garantia dos direitos da população LGBTQIA. Mas, mesmo com a decisão do Supremo, a luta pela legislação continua. Atualmente, o Projeto de Lei 5002/2013, conhecido como “Lei João Nery” e de autoria dos deputados Jean Wyllys (Psol/RJ) e Érika Kokay (PT/DF), busca garantir o direito à identidade de gênero e está parado no Legislativo sem previsão de voltar à pauta.  

Juliana Cesario Alvim Gomes, advogada e professora de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), comenta a situação: “O legislativo tem um poder simbólico muito grande, por vir de um órgão democraticamente eleito, plural e não hierárquico. A vitória do Supremo é muito importante e direitos não podem ficar esperando o Legislativo agir, mas ela vem de pessoas bem específicas, que não foram escolhidas por voto e que têm a mesma formação. Por isso, não acho que seja suficiente. Uma aprovação de uma legislação, desde que respeitando todos os parâmetros  que foram colocados pelo Supremo e a Constituição, seria sempre positivo”.

DENOMINADOR COMUM ENTRE NA COMUNIDADE TRANS

Ativistas trans se reúnem em frente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro no Dia da Visibilidade Trans (Foto: João Ker | Revista Híbrida)
Ativistas trans se reúnem em frente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro no Dia da Visibilidade Trans (Foto: João Ker | Revista Híbrida)

No último Dia da Visibilidade Trans, em 19 de janeiro, a Revista Híbrida esteve presente na manifestação em frente à Câmera Municipal do Rio de Janeiro, onde ativistas trans haviam se reunido para debater os principais pontos de luta para a igualdade de direitos dessa população. O denominador comum entre todas as pessoas ouvidas? A oficialização do nome social.

“É fundamental o reconhecimento das identidades trans. Em primeiro lugar, lutamos há muito tempo por esse direito e ainda nos questionam [sobre isso]. Nós, como militantes, temos a necessidade de lutarmos por isso, porque tudo o que existe até hoje é gambiarra, não é política pública de fato”, afirmou Melissa Campos (41), de Londrina.

Ao lado dela, a atriz Maria Eduarda Campos (39) concordou: “É uma questão importante porque ao mesmo tempo que o Estado te dá o acesso ao nome social, ele mesmo ignora esse direito através de ações burocráticas. É uma violência institucional”, declarou.

Melisa e Maria Eduarda Campos durante a manifestação no Dia da Visbilidade Trans, no Rio de Janeiro (Foto: João Ker | Revista Híbrida)
Melisa e Maria Eduarda Campos durante a manifestação no Dia da Visbilidade Trans, no Rio de Janeiro (Foto: João Ker | Revista Híbrida)

A cearense Wescla Vasconcelos (22) fez eco a essas preocupações, complementando: “Precisamos da lei da identidade de gênero na instância federal, porque isso facilita muito o nosso acesso a inúmeras questões. Muitos problemas podem ser resolvidos com o nome social”. A artista baiana Tertuliana Lustosa (21) ainda acrescentou especificamente a questão do Projeto de Lei 5002/2013: “A gente precisa muito aprovar a Lei João Nery, para termos dignidade e certeza nos nossos direitos. Ter um nome é o mínimo”.

Wescla e Tertuliana reforçam a importância do direito ao nome social para a população trans (Foto: João Ker | Revista Híbrida)